Filósofa concede primeira entrevista depois de “cancelada” por universidade alemã por apoiar a Palestina. Ela teme que a tendência se alastre na Europa e no país – que tem silenciado sistematicamente as críticas aos crimes praticado por Israel
Por Jacobin Brasil, compartilhado de Outras Palavras
Entrevista a Hanno Hauenstein, na Jacobin
A renomada filósofa Nancy Fraser, autora de importantissimas obras como O velho está morrendo e o novo não pode nascer e Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso (lançado esse ano pela editora Autonomia Literária), já estava pronta para exercer a cátedra Albertus Magnus na Universidade de Colônia em maio deste ano. Porém, logo no início de abril, ela foi abruptamente desconvidada pelo reitor da universidade, Joybrato Mukherjee, por ter assinado uma carta de solidariedade à Palestina no último outono.
Nesta entrevista com Hanno Hauenstein, Fraser se manifesta e esclarece todos os fatos a respeito dos acontecimentos pela primeira vez.
A Universidade de Colônia te desconvidou do cargo de professora visitante pela cátedra Albertus Magnus. O que este convite envolveria?
Este cargo de professora envolvia uma visita de vários dias e palestras públicas sob os auspícios de um programa supostamente dedicado ao diálogo aberto. Decidi dar palestras sobre meu projeto de livro atual sobre as três faces do trabalho na sociedade capitalista, um tópico que não tinha nenhuma relação direta com Israel ou a Palestina. Eu havia me adiantado e trabalhado muito na preparação dessas aulas. Aliás, a passagem de avião que tive de comprar saiu bem cara.
Poderia nos elucidar o passo-a-passo do cancelamento?
Há alguns dias, recebi um e-mail de um professor de Colônia, Andreas Speer, quem organiza esses eventos. Ele me contou que tinha acabado de receber notícias do reitor da universidade, que estava preocupado com o fato de eu ter assinado a declaração “Philosophy for Palestine” em novembro e queria que eu esclarecesse minha posição. Pensei comigo mesma: como ele se atreve?! Quero dizer, o que ele tem a ver com minhas opiniões sobre o Oriente Médio? Sou uma pessoa independente, posso assinar o que eu bem entender.
Ao mesmo tempo, eu não queria ser excessivamente afrontosa. Então lhe respondi: “Bem, é claro que há muitas opiniões diferentes sobre a Palestina e Israel, e há muito sofrimento para todos, inclusive o sofrimento pelo qual eu mesma passei enquanto judia. Mas há uma coisa sobre a qual não pode haver discordância. Citei uma frase de uma declaração que o reitor havia publicado no site da universidade sobre a importância dos debates abertos e respeitosos. Assim, eu disse ao Sr. Speer, “por favor, assegure ao reitor que ele pode contar comigo na defesa de uma discussão aberta e respeitosa”.
Pensei que isso colocaria um ponto final na questão. No entanto, apenas um ou dois dias depois, recebi um e-mail direto do reitor dizendo que ele não tinha outra escolha a não ser desfazer o convite. Ele escreveu explicitamente — em preto no branco — que, pelo fato de eu ter assinado a declaração de apoio à Palestina e não ter voltado atrás em nossa comunicação posterior, eu seria cancelada.
Qual foi o principal ponto de discórdia? Foi o uso dos termos “apartheid” e “genocídio”? Ou foi o boicote às instituições israelenses, ao qual a carta convida os leitores a participar?
Eu realmente não sei, pois não recebi nenhuma explicação adicional. O reitor se disponibilizou para conversar comigo por celular ou por vídeo, a fim de me explicar melhor seus pontos de vista. Não o respondi. Esse assunto é público. Acho que todos nós precisamos deixar isso registrado. Portanto, caberá a ele esclarecer isso. Há também uma nova declaração no site da universidade agora. Ao meu ver, grande parte disso é cortina de fumaça. É uma clara violação da política declarada da própria universidade, bem como dos próprios valores que eles invocam com o nome Albertus Magnus.
Esses valores são precisamente valores de liberdade acadêmica, liberdade de opinião, liberdade de expressão e discussão aberta. Quaisquer que sejam as racionalizações complicadas que estejam sendo dadas para explicar por que esse processo supostamente não viola esses valores, para mim soam vazias. Isso também é uma mensagem muito enfática a todas as pessoas da universidade e aos acadêmicos de todo o mundo: se você ousar, digamos, expressar certas opiniões sobre determinados assuntos políticos, você não será bem-vindo aqui [na Alemanha]. Isso tem um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão política das pessoas.
Considerando que você identifica o ocorrido como uma violação das políticas da universidade, você pretende tomar medidas legais?
Eu pensei sobre isso. Não é minha prioridade. Mas é uma possibilidade que não descarto. Porém, antes de mais nada, quero convencer as pessoas de que esse é um exemplo realmente ultrajante de algo que muitas pessoas indicariam como uma tendência muito mais ampla na Alemanha de hoje.
As pessoas que ocupam posições de poder nas universidades e instituições de arte alemãs e as pessoas do governo federal alemão que podem estar incentivando-as nesse sentido devem pensar duas vezes. Elas estão claramente violando as normas acadêmicas amplamente difundidas — e, honestamente, constitucionais — sobre liberdade política e liberdade de expressão. Isso causará danos consideráveis à academia alemã.
Considerando apenas a história mais recente de indignação pública e cancelamentos na Alemanha, você parece estar em boa companhia. Houve os casos de Masha Gessen, Ghassan Hage, Judith Butler e vários outros. Muitas dessas pessoas são, como a senhora, judias. Isso te preocupa de alguma forma?
Não em um sentido pessoal. Estou em Nova York e tenho um enorme apoio, inclusive uma carta extremamente contundente da presidente da minha própria universidade, a New School, Donna Shalala, que começa com a ótima frase: “Albertus Magnus ficaria escandalizado!”
Ela observa que é especialmente preocupante para uma instituição alemã cancelar um membro do corpo docente da New School, que não apenas resgatou acadêmicos alemães que fugiam do fascismo como indivíduos, mas também criou um espaço para dar continuidade ao corpo de teoria crítica que havia sido eliminado na Alemanha. A New School contribuiu para esse corpo de pensamento tão bem quanto eu pessoalmente. Portanto, isso é um insulto à New School, assim como a mim. Mas, mais importante ainda, é uma violação das normas de liberdade acadêmica.
Você identifica isso como uma tendência?
Sim — e estou bastante preocupada. Penso nisso como uma febre que está tomando conta da Alemanha e, em menor escala, da Áustria. É algo muito prejudicial. Também acho que é muito importante que os alemães entendam um pouco da complexidade e da amplitude do judaísmo, sua história e sua perspectiva. Eles estão meio que aderindo a essa ideia de um juramento incondicional de fidelidade a Israel, como se a responsabilidade alemã fosse essa: um apoio irrestrito ao Estado de Israel.
Considerando o que Israel está fazendo atualmente, isso é uma traição aos aspectos mais importantes e significativos do judaísmo enquanto uma história, uma perspectiva e um corpo de pensamento. Refiro-me ao judaísmo de Maimônides e de [Baruch] Espinosa, de Sigmund Freud, Heinrich Heine e Ernst Bloch.
Você pode especificar o que quer dizer com isso?
Essa [outra] tradição do judaísmo está reduzindo o judaísmo não apenas ao nacionalismo, mas a um ultranacionalismo que está pisoteando e basicamente destruindo a Faixa de Gaza. A propósito, acabei de assinar outra carta! Não me arrependo. Uma carta contra o “scholasticide” israelense (em tradução livre, “academicídio”), ou seja, a destruição de escolas e universidades em Gaza.
Mais de cem professores foram assassinados lá. Nove presidentes de universidades já foram assassinados. Os nomes dos judeus que mencionei anteriormente são só uma breve exemplificação — há muitos outros. Basta pensar em Albert Einstein, a quem foi oferecida a presidência do Estado de Israel — que ele recusou. Trata-se de pessoas cujo próprio judaísmo levou a defenderem os direitos universais, e não uma identidade tribal restrita.
Alguns de seus críticos afirmaram que, em realidade, você não foi cancelada, mas que simplesmente lhe recusaram o que seria uma espécie de homenagem.
Alguns alemães se sentem tentados a fazer rodeios sobre isso, dizendo que se trataria apenas de um prêmio honorário. Muitos alemães, até mesmo jornalistas, foram intimidados a aceitar uma visão muito distorcida e estreita do que realmente significa a liberdade acadêmica. O argumento de que algo pode ser simplesmente retirado porque é apenas um prêmio — não algo genuinamente acadêmico — é uma besteira.
O fato é que se trata de uma cadeira de professor visitante, uma nomeação acadêmica. Juntamente com todos os outros ex-titulares dessa cadeira, fui selecionada pelo meu trabalho acadêmico. A ideia de que minhas ações fora do âmbito universitário seriam motivo de desconvite já é indicativa de que a autonomia acadêmica está sendo violada. Não há dúvidas quanto a isso. Quero dizer a essas pessoas que vocês têm, de fato, a responsabilidade de pensar profundamente sobre os judeus. Só que estão pensando da maneira errada. Há outra maneira de pensar sobre isso.
Algumas pessoas críticas, como Masha Gessen, argumentaram que a interpretação específica da Alemanha do “Staatsräson” (razão de Estado) em relação a Israel nos últimos anos colaborou na ascensão de extremistas de direita, como a Alternative für Deutschland (AfD). Você concorda?
Não posso comentar especificamente sobre o AfD. O que posso dizer é que, nos Estados Unidos, a direita cristã evangélica tem sua própria versão de “Macarthismo filossemita” (“philosemitic McCarthyism”), para usar a frase de Susan Neiman. E eles têm uma lógica teológica que é, por si só, profundamente antissemita. Mas, para mim, o mais preocupante na Alemanha não é a AfD.
O que seria mais preocupante?
Um tipo de centrismo de pensamento correto, que é onde está o verdadeiro peso da opinião pública. A opinião pública está sendo facilmente cooptada por argumentos fragorosamente falsos. Como o argumento de que, ao me desconvidar, supostamente ninguém estaria violando a liberdade acadêmica, mas simplesmente optando por não homenagear uma pessoa que tem as opiniões que eles imaginam que eu tenha.
Você disse que não há nenhuma relação profunda entre a carta aberta “Philosophy for Palestine” e o curso que você lecionaria em Colônia. Mas não haveria conexões entre seu posicionamento assumido na carta e seus escritos acadêmicos?
Eu não me restrinjo a um único papel. Faço trabalhos teóricos. Ocasionalmente, assino cartas como cidadã. Não acho que isso deva estar diretamente relacionado. No entanto, de vez em quando, escrevo de um modo mais panfletário e agitador. O melhor exemplo disso é o Feminism for the 99% (Feminismo para os 99%: um Manifesto, traduzido e lançado em 2019 pela Editora Boitempo) que escrevi em coautoria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya. Pegamos ideias que cada uma de nós vinha desenvolvendo em seu próprio trabalho e meio que as fundimos. Trata-se de um manifesto sobre como traçar um caminho diferente para o ativismo feminista que fosse entendido como de interesse dos 99%, das mulheres, dos homens e das crianças — em oposição a um certo tipo de feminismo neoliberal corporativo. Portanto, tentei popularizar minhas ideias acadêmicas, mas nunca escrevi sobre o Oriente Médio. Não tenho grande experiência nessa área, mas sou uma cidadã leitora e pensante. E como judia, sinto que é minha responsabilidade especial pelo sentimento do tipo “not in our name” (“não em nosso nome”, slogan popularizado pelos protestos de judeus contrários às ações de Israel).
Porque o que é feito em Gaza é, até certo ponto, feito em nome do povo judeu?
Exatamente. Também não há dúvida de que há uma instrumentalização, ou até mesmo uma armamentização, da acusação de antissemitismo que está sendo usada de forma tão equivocada em relação às pessoas que acham que, ao condenar o curso atual do governo israelense, estaríamos defendendo uma correção de um processo para melhorar a situação dos palestinos, bem como do povo judeu em todos os lugares.
Isso me parece uma declaração honrosa. Na Alemanha, entretanto, o Bundestag (parlamento) aprovou uma resolução declarando boicotes a instituições israelenses como uma instância de antissemitismo. Muitos na Alemanha associam esses boicotes a imagens de boicotes históricos contra os judeus alemães na década de 1930.
É uma associação curiosa, para se dizer o mínimo. Afinal de contas, não havia nenhum estado judeu na época que estivesse envolvido em uma carnificina militarista ilegítima. Um paralelo muito melhor poderia ser feito em relação à África do Sul, onde houve um forte boicote acadêmico, um boicote esportivo e um boicote cultural, que tiveram algum impacto, juntamente com o boicote econômico, levando ao fim do apartheid. A propósito, os alemães não se limitaram a boicotar os judeus. Eles os expulsaram, cercaram-nos, enviaram-nos para campos de concentração e os mataram. Nada disso está acontecendo neste caso.
Você tem planos de repetir a série de palestras que aconteceria em Colônia em outro lugar?
Certamente lecionarei em outro lugar! Trata-se de uma nova versão ampliada e revisada de algumas palestras que dei em Berlim há dois anos. Estou com muito material novo, e estava ansiosa para apresenta-lo. Minha universidade, a New School, está organizando um evento. Também foi sugerido que eu fizesse palestras em outros lugares da Alemanha sob o título: “Isso é o que eles não queriam que você ouvisse em Colônia”.
Alguns professores alemães expressaram solidariedade a você. Você acredita que as pessoas na Alemanha podem estar mudando de opinião sobre essas questões?
Não estou perto o suficiente de lá para ter uma visão informada sobre isso. Mas tenho a sensação de que essa febre vai acabar. Se o meu caso é o evento precipitante, ou o próximo caso, ou o seguinte, não saberia dizer. Há uma inquietação crescente com relação a isso. Pelo menos é dessa forma que as pessoas em Nova York veem a questão.
Seus colegas se questionam o que está acontecendo ao olharem para a Alemanha?
Entre acadêmicos e pessoas do mundo artístico, com certeza. Também no jornalismo, já que o caso Gessen foi amplamente divulgado. Bem como a tentativa tardia de retirar de Butler o Prêmio Adorno — tudo isso é muito discutido. Pelo menos nas artes, no meio acadêmico e no jornalismo, as pessoas estão muito perturbadas, chocadas e também indignadas. Houve muitos palestinos e árabes étnicos que foram vitimados por isso, mas também judeus de destaque. Tudo isso incita esse questionamento: quem são vocês para nos dizer o que significa apoiar o povo judeu?
Você se considera uma vítima do que descreveu anteriormente como antissemitismo filosófico?
Acho que sim. Estou sendo cancelada em nome da responsabilidade especial alemã pelo Holocausto. Presumo que essa responsabilidade deva incluir a responsabilidade para com os judeus. Mas, é claro, ela é reduzida às políticas estatais de qualquer governo que esteja no poder em Israel. Para nós, nos Estados Unidos, o Macarthismo é um termo poderoso. É uma forma de calar as pessoas sob o pretexto de que se estaria supostamente defendendo os judeus.
De onde você acha que isso vem?
Isso simplesmente se tornou normalizado. As pessoas na Alemanha passaram a aceitar uma visão limitada do que significa liberdade acadêmica e liberdade de expressão e do que são as liberdades políticas democráticas.
Os EUA e a Alemanha foram os dois fornecedores mais importantes de apoio e armas para Israel nos últimos seis meses. Como isso influencia sua opinião sobre a Alemanha?
O principal culpado aqui são os Estados Unidos. Não estou isentando a Alemanha, mas, na verdade, se você quer saber quem está financiando as políticas [de Israel], são os EUA. Entretanto, pela primeira vez em minha vida, acho que está ocorrendo uma discussão pública equilibrada sobre a questão da Palestina. As vozes palestinas estão na esfera pública. As organizações, inclusive as organizações judaicas de esquerda que criticam a política israelense, estão na esfera pública.
Biden está sob muita pressão. Ele tem falado de forma mais dura sobre condicionar a ajuda e pedir um cessar-fogo. Resta saber se isso se traduzirá em cortes reais ou condicionalidade da ajuda, se os democratas no Congresso tentarão forçar essa questão. Mas, pelo menos, a torneira aberta de ajuda militar do nosso governo se tornou politizada e contestada.
Espero que algo assim se desenvolva também na Alemanha. Que pelo menos isso se torne uma questão pública sobre a qual se possa discutir, sem acusações de antissemitismo ou cancelamentos.
Nancy Fraser é professora de filosofia e política na New School for Social Research. É co-editora do livro “Feminismo para os 99%”(Boitempo 2019) e autora do livro “O velho está morrendo e o novo não pode nascer” (Autonomia Literária 2020).
Hanno Hauenstein é um jornalista independente radicado em Berlim. Escreveu para o Guardian, o Intercept e vários veículos alemães.