Por que ainda precisamos falar que é um erro associar aids à homossexualidade

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Por Andréa Martinelli, compartilhado de Huffpost Brasil – 

A doença está regredindo no Brasil, apesar de aumento recente nas infecções por HIV que acabam atingindo mais “círculos de exclusão”, segundo infectologista.

Ativistas do movimento LGBT e pesquisadores se mobilizam contra declarações homofóbicas da pastora evangélica Ana Paula Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, de Belo Horizonte (MG). Em vídeo de 2016 que viralizou no último fim de semana, ela afirma que homens gays escolheram pelo “pecado” e diz, de forma equivocada, que a aids é decorrente da “união sexual entre dois homens”.




Infectologista ouvido pelo HuffPost afirma que o entendimento da pastora, baseado em preconceito, é comum a quem não estuda o assunto, o que gera interpretações discriminatórias e superficiais sobre a doença causada pelo vírus HIV.

“Desde o início da epidemia, há 30 anos, as pessoas tinham na cabeça uma ideia de que homem gay é impuro — ele não podia nem doar sangue. E quando você tira o preconceito da história e coloca critérios técnicos [tanto sobre a doença, e a doação], você acaba com um estigma”, diz o infectologista Rico Vasconcellos, do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).

A organização Aliança Nacional LGBT+, em nota, afirma que irá processar Valadão por LGBTfobia, de acordo com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), em 2019.

NACHO DOCE / REUTERS

Dados mais recentes do Ministério da Saúde, divulgados em dezembro de 2019, mostram que casos de aids, a síndrome causada pelo vírus HIV, estão caindo no Brasil, assim como as mortes pela doença.

O número anual de casos de aids vem diminuindo desde 2012, quando atingiu 42.934 casos; em 2018, foram registrados 37.161 casos no País.

Na população geral, há uma prevalência baixa da infecção, que se mantém estável em 0,4%, enquanto em alguns subgrupos específicos essa proporção sobe. A maior concentração dos casos no País foi observada em pessoas entre 25 e 39 anos, em ambos os sexos. Os casos nessa faixa etária correspondem a 52,4% dos casos do sexo masculino e, entre as mulheres, a 48,4% do total.

Porém, os casos de infecção por HIV, segundo o boletim, vêm aumentando nos últimos anos. De 2007 até junho de 2019, foram notificados 300.496 casos de infecção pelo HIV no Brasil. Neste contexto, há mais indivíduos com o vírus e menos com a síndrome no País.

No período de 2007 a junho de 2019, no que se refere às faixas etárias, observou-se que a maioria dos casos de infecção pelo HIV encontra-se na faixa de 20 a 34 anos, com percentual de 52,7% dos casos.

O boletim epidemiológico do ministério utilizou três fontes de dados: Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) e registros no Siscel (Sistema de Informação de Exames Laboratoriais).

A falta de campanhas e a vulnerabilidade da população LGBT

NACHO DOCE / REUTERS
Os dados oficiais mostram que, entre homens gays e bissexuais a prevalência de HIV subiu de 12% para 18% entre 2009 e 2016.

Especificamente entre homens, no período de 2007 a 2019, o estudo mostra que foram verificados que 51,3% dos casos de infecção pelo HIV foram decorrentes de exposição homossexual ou bissexual e 31,4% heterossexual, e 2% se deram entre usuários de drogas injetáveis.

Já entre as mulheres, 86,5% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual.

Embora qualquer um possa ser infectado pelo vírus e desenvolver a doença, o infectologista Rico Vasconcellos pontua que há uma vulnerabilidade em relação à infecção e ao tratamento que é vivenciada, em especial, por gays, bissexuais e mulheres trans e travestis.

“Assim como todas as outras epidemias do mundo de doenças transmissíveis, a do vírus HIV também costuma circular pelos círculos de exclusão”, explica Vasconcelos. “A gente tem a vulnerabilidade social como um dos maiores determinantes da disseminação do HIV na sociedade brasileira.”

Para o infectologista, a homofobia institucional no Brasil potencializa o estigma herdado pela epidemia nos anos 1980, o que colabora para a continuidade dessa “epidemia concentrada” no País.

Essa constatação vai na contramão de outros países como Austrália e Reino Unido, por exemplo, em que a a incidência de HIV está diminuindo gradualmente entre gays, segundo dados recentes da UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids).

A vulnerabilidade das pessoas trans ao HIV/Aids

Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde não especifica dados sobre a população trans. Porém, segundo o Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil, realizado em 7 capitais, 90,3% da população de transexuais e travestis já passou por pelo menos uma situação de estigma ou discriminação.

Os dados, levantados entre abril e agosto de 2019, foram apresentados pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (UNAIDS), em reunião técnica realizada no escritório da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), em Brasília (DF).

Dados da UNAIDS de 2019 mostram que, globalmente, a população trans tem 12 vezes mais chance de infecção pelo HIV do que a população em geral.

No Brasil, a agenda estratégica para ampliação do acesso e cuidado integral das populações-chaves em HIV, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis, lançada em 2018 pelo Ministério, estima que a taxa de infecção dessa população pode chegar a até 36,9%.

“Desde o começo da epidemia lá na década de 80, ela [doença] se concentrou entre gays, bissexuais, mulheres trans e travestis. E nas últimas décadas o que foi feito direcionado para essa população?”, questiona o especialista. “Quando você tenta ver o tipo de campanha que foi feita pelo Ministério da Saúde você só encontra a comunicação para héteros.”

Um exemplo citado pelo especialista é a campanha do Carnaval de 2019 do governo federal, que levava o rosto do cantor sertanejo Gabriel Diniz, famoso pela música Jenifer, que não tem um apelo direcionado à população LGBT.

“Os casos de HIV têm aumentado no Brasil e a aids é uma doença que ainda não tem cura. Para que se arriscar mais?”, diz o cantor no vídeo da campanha. “Não importa se seu nome é Jenifer, João, Jéssica ou Jorge. Se é no Carnaval ou em qualquer outro lugar, tem que usar camisinha”, completa ele.

“Todo mundo acha que LGBTs pegam HIV porque transaram sem camisinha. Quando, na verdade, já é sabido que a população gay é quem mais faz uso de preservativos. Eles não são os culpados, eles são os mais vulnerabilizados”, diz Vasconcelos.

Ainda chama a atenção que, na última década, segundo os dados da pasta, houve um aumento da taxa de infecção entre jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos, que foram, respectivamente de 62,2% e 94,6% entre 2008 e 2018.

Em 2018, a maior taxa de detecção foi de 50,9 casos/100.000 habitantes, que ocorreu entre os indivíduos na faixa etária de 25 a 29 anos, diz o boletim.

O aumento desses números se deve a uma realidade multifatorial, segundo o especialista. De um lado, questões culturais como o fato de os jovens de hoje não terem vivenciado a morte de seus ídolos pela doença, como vimos nos anos 1980 e 1990. Por outro lado, a eficácia do tratamento contra a aids, que pode fazer as pessoas relaxarem quanto a prevenir a doença com uso do preservativo.

“A comunicação de prevenção nestes 10 anos não se transformou”, diz. “Certamente você não vai conseguir controlar os novos casos de infecção de HIV entre os jovens de hoje usando o discurso de 10 anos atrás. Então, “use camisinha” é uma coisa que fazia sentido como comunicação única há 10 anos, hoje em dia não faz mais sentido. Só dizer isso não basta.”

Ele pontua que o esvaziamento de campanhas de prevenção que tenham como foco a diversidade e a perda de financiamento de organizações não-governamentais especializadas são prejudiciais para o combate à doença.

“O melhor que eu acho que temos para fazer agora é fazer com que os jovens tenham uma adequada percepção de risco para saberem quando eles estão correndo risco de se infectarem por HIV e outras ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e conseguir instrumentalizá-los para gerenciar uma maneira de reduzir esse risco.”

Hoje, o SUS orienta o sistema de prevenção combinada do HIV, que soma técnicas diversas para alcançar resultados mais assertivos contra a doença. Entre elas, estão a testagem regular, o uso de preservativos, a prevenção de transmissão vertical (quando acontece de mãe para filho) e a PrEP.

A PrEP, sigla em inglês para Profilaxia Pré-Exposição, é uma medida preventiva antes de se ter contato com o vírus. O comprimido é composto por 2 medicamentos que também integram antirretrovirais, receitados a quem se trata do HIV. Entre eles, a emtricitabina, que tem poucos efeitos colaterais, e tenofovir que, com o tempo, pode afetar rins e ossos.

Para Vasconcelos, neste contexto, não só a ausência de campanhas de acesso à informação, mas a ausência de uma abordagem educativa efetiva no campo da prevenção do HIV é também problemática – algo que se agrava devido à crise sanitária e econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus.

“Além de falar sobre prevenção, temos que falar sobre desigualdade de gênero. Tudo isso também alimenta a epidemia. Não é só o sexo sem camisinha que impulsiona, que funciona como gasolina para a epidemia crescer. Qualquer outra forma de discriminação também acaba sendo prejudicial.”

Logo no início da crise, a UNAIDS pediu aos países  que continuassem garantindo “que as pessoas possam continuar acessando os serviços de que precisam para permanecerem livres do HIV, sem discriminação e sem violência” e que “desfrutassem de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

“O efeito que isso [pandemia] poderia ter nos avanços que foram obtidos ao longo de décadas poderia ser catastróficos”, diz Vasconcelos, que avalia que até o momento a continuidade do atendimento nos centros de saúde não sofreu significativamente com a pandemia. “Ouvi alguns relatos de que alguns atendimentos foram adiados, mas não deixaram de acontecer. Avalio que, no geral, o Brasil até que se saiu bem nesse aspecto até agora.”

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