Por quê Bolsonaro venceu?

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Por Fernando Horta, publicado em Jornal GGN – 

Uma das características mais desconcertantes do fascismo é que os sujeitos simplesmente param de agir através de um cálculo racional da relação custo-benefício de suas ações. Passam a fazer “sacrifícios” e tomar decisões com um falso “altruísmo” que, no fundo, mascara o autoritarismo, especialmente em seus estágios iniciais.

Este mesmo problema, do fim do modelo de ator racional, tem pego despreparados inúmeros analistas.




Jessé Souza escreveu artigo recente afirmando que a derrota eleitoral que a esquerda sofreu em 2018 ocorreu porque “os candidatos progressistas não entenderam o que estava em jogo na campanha”. No corpo do texto, o sociólogo dispara contra Haddad e Ciro, afirmando que “quando a esquerda não denuncia este esquema elitista”, o ganho financeiro privado via manipulação instrumentos coercitivos do Estado, “o legitima e o valida expressamente”. Para Jessé, “imaginar uma oposição abstrata entre democracia e fascismo” “sem explicar as causas da pobreza real, é de uma ingenuidade fantástica.”

Na explicação de Jessé está mudo o uso do modelo de ator racional. Como se as pessoas percebessem a realidade empírica e, através de uma análise pragmática dos custos e benefícios, optassem pela alternativa que tivesse o melhor resultado positivo sempre. Não é a primeira vez que Jessé comete este deslize, de atribuir a atores um domínio da informação que beira a perfeição e racionalizar todas as ações e resultados ocorridos através da atribuição de causa e efeito que, simplesmente, não existem. Jessé faz uma “engenharia reversa” do passado utilizando informações que ele tem (por estar adiante do tempo em que os sujeitos agiram), e tomando todo o caminho explicativo até o futuro do analista como determinado racionalmente. Isto é errado e é chamado na História de “teleologia”.

É errado não apenas porque os atores não dispõem, no momento da tomada de decisão, das informações que o analista (que está à frente no tempo) tem. Além disto, inúmeros eventos são fruto de “consequências não antecipadas” pelos agentes ou acaso mesmo. Isto não exclui o fato de que a intencionalidade dos agentes exista e que seja moldada, entre outras coisas, por sua posição nos processos produtivos, mas torna a explicação das relações de causa e efeito, baseadas neste modelo, fracas e frequentemente insuficientes.

Os problemas teóricos do uso do modelo do ator racional em análises políticas são bastante discutidos na academia, mas, ainda assim, a discussão não elimina a sua utilização. Ocorre que o fascismo altera fundamentalmente este ponto e daí todo o castelo analítico cai.

Alguns analistas se sentem desconfortáveis sem o modelo de ator racional, sem poder dizer que o “ator A” tomou determinada decisão porque as escolhas eram tais que o resultado se encaixa numa noção de ganho pessoal. Ou o agente lucra, ou amealha poder, ou ainda afasta importantes concorrentes seus do acesso a determinados recursos, que lhe fariam a existência mais fácil. Os cenários se tornam pouco lógicos e as ações complexas. Frequentemente economistas caem neste erro. A supervaloração dos agentes como “racionais”, movidos essencialmente por ganhos materiais e normalmente econômicos, esbarra em decisões individuais diferentes do “previsto”. E a análise falha.

O que é preciso ressaltar é que, no caso do fascismo, não são apenas “decisões individuais” que estão sujeitas a não serem de caráter “racional”. Trata-se de um sistema de pensamento que altera a lógica materialista fazendo com que as massas não possam mais ser enquadradas como tomadoras “racionais” de decisão. O fascismo cria o apelo ao sacrifício do indivíduo, seja através da noção religiosa, seja pela nacionalista. Trabalhadores vão votar contra seus direitos, mulheres contra suas liberdades e cristãos contra Cristo. Não é à toa que o slogan de campanha do fascista foi “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”. Duas noções abertas (“Deus” e “Brasil”) que não possuem voz, e pelas quais os “líderes” podem falar sem medo de serem contraditados. Ao mesmo tempo que induzem o sacrifício das massas em nome de “bens maiores”, estas noções sequestram, no imaginário individual, a figura e o desejo de “Deus”, bem como a figura e o bem do “Brasil”. É como se “Deus” só falasse ou estivesse presente nas ações do fascista e estas ações sempre visassem o “bem” do “Brasil”.

O resultado prático disto é que os atores deixam de tomarem decisões racionais, ou seja ponderando as SUAS posições sociais e econômicas, escolhendo o que melhor lhe beneficiasse. Isto fica evidente na fala de uma “convidada” a ocupar cargos ministeriais que declarou, sem vergonha alguma, que o brasileiro tinha “aberto mão dos direitos humanos” em troca de “emprego, comida e segurança”. Este efeito é também visível na fala do eleito quando diz que o trabalhador terá que escolher entre “mais direitos” e não ter emprego ou “menos direitos” com emprego. Qualquer um sabe que não é esta a escolha, mas o ataque do fascismo é exatamente sobre a decisão racional. Criando nas massas a disposição ao “sacrifício” por “Deus”, pela “pátria” ou para “acabar com a corrupção”.

Milhões foram lançados em guerras pelo mundo, na primeira metade do século XX, baseados na noção deste “sacrifício”. As torturas, extermínios, estupros e toda sorte de violências geradas pelos modelos fascistas são explicadas através deste mecanismo. As massas passam a se convencer que é “o único caminho” e que “os fins justificam os meios”.

Foi exatamente por isto que o apelo de Ciro por acabar com as dívidas da população no SPC ou o gás ser vendido a quarenta e nove reais de Haddad não surtiram efeito algum. Diferentemente do que afirma Jessé, não foi um “erro da esquerda” não ter explicado “as causas da pobreza real” ou “desmascarado” o sistema do rentismo nacional ou internacional. Ambos tentaram. Os métodos é que não foram bem-sucedidos por terem, como fez também Jessé, tomado o modelo de ator racional como ainda em vigor. A base de toda a política da era Lula era este modelo. A ideia era usar o Estado para melhorar efetivamente a vida da maior parte da população e assim, no entender dos que pensaram aquele sistema, as vitórias eleitorais se tornariam mais logicas.

E isto realmente aconteceu. Por quatro eleições consecutivas o PT foi bem sucedido.

O que a esquerda, petista e não petista (e também Jessé) não contavam é com a ferramenta do fascismo de alteração da lógica da tomada de decisão pela eliminação do modelo racional e apelo ao “sacrifício”, escondendo momentaneamente o autoritarismo nela contido. Por apelar a figuras vazias como “Deus”, os pastores evangélicos que mais descaradamente se dizem falar por Ele se tornaram forças imparáveis. Por apelar à noção de “Pátria”, os militares mais toscos e ignorantes passaram a ter imenso poder.

A vitória do capitão fascista nada mais é do que a junção política destas duas noções. E por ajudar a esfacelar os contratos sociais escritos, como a constituição, as leis ou mesmo os Direitos Humanos, os liberais pagaram o preço da quase extinção. O centro político, ou “as pessoas razoáveis”, nas palavras do ex-presidente FHC, estão sem espaço no Brasil. Virtualmente deixaram de existir, e Doria (obtuso, ignorante e protofascista) substitui Alckmin, da mesma forma que Joice Hasselmann substitui Reinaldo Azevedo e Bolsonaro ocupa o espaço que Lula ocupava. É a brutalização das narrativas explicativas da realidade e a destruição do modelo racional nas massas. A partir de agora, tudo é permitido, tudo explicado e tudo desculpado pelo “bem” do país ou por desígnio de “Deus”.

As esquerdas acharam que a resposta a isto seria a valorização do racional, da lógica, do conhecimento e do econômico. Ciro se vendeu como “inteligente”, “capaz” e “preparado”. Haddad colocava seu currículo como ponto de destaque. Apresentava suas experiências administrativas e seus prêmios internacionais enquanto oferecia alternativas reais à vida das pessoas. Alternativas racionais. Falharam porque a luta é no campo do sentimento e não da razão. Lula teria vencido o fascista no primeiro turno. Sem ele … estamos à deriva.

Este sistema de crenças e de entendimento do mundo, que turva a racionalidade tanto como valor, como quanto método de análise e entendimento das coisas, só é destruído pela dor da empiria mais rasa. Somente quando as massas passarem a sentir, fome, morte, guerra e outras mazelas DENTRO do regime fascista é que este círculo de pensamento é quebrado. Não foi por acaso que o fascismo precisou de 70 milhões de mortos para ser contido. E que mesmo derrotados e expostos, Mussolini e Hitler têm, ainda hoje, um imenso número de adoradores.

Se as instituições brasileiras não agirem neste ainda não assumido governo, retirando o fascista do poder e fazendo valer a letra da constituição e dos códigos, não conseguirão mais conter a espiral de violência e autoritarismo no Brasil.

A democracia é muito forte, tem inúmeras redes de segurança. Se Lula não tivesse sido condenado sem provas e concorrido, o fascismo não tomaria o país. Se Lula tivesse sido permitido fazer campanha com Haddad (ainda que inelegível), o fascismo não teria vencido. Se o STF tivesse feito o seu trabalho, tornando inelegível um racista, misógino agressor de minorias, estaríamos longe desta ameaça. Se a imprensa tivesse denunciado este autoritarismo fascista pelos últimos 4 anos, teríamos condições de ter vencido. Se os empresários tivessem compreendido que a política desenvolvimentista do PT, mesmo com alguns erros, é muito melhor do que o autoritarismo ignorante do fascismo, não estaríamos na situação horrível frente ao mundo que estamos hoje. Se a esquerda tivesse compreendido o que é o fascismo …

A democracia é forte, mas não pode tudo. E com a ajuda sim do rentismo nacional e internacional, do judiciário brasileiro, de uma parcela do exército e de pastores milionários da teologia da prosperidade, o fascismo está se instalando no Brasil. E não foi por “erro” da esquerda quanto aos seus objetivos. Foi por desconhecimento do que é e como funciona o fascismo. Erro que comete também Jessé.

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