Por Ulisses Capozzoli, jornalista
Onde pessoas não irão se dar conta de que uma parte ínfima, mas real, da chuva que cai se formou do vapor de uma xícara de um café da manhã. Ninguém saberá disso. Tudo improvável, mas ainda assim real.
Na manhã gelada o café evapora nas asas transparentes de uma libélula, uma coluna de vapor quase invisível ondulando pela perturbação de uma fala: O queijo, por favor… o açúcar… obrigado.
A coluna de vapor do café quente deixando a xícara afetada pela fraca onda de choque, a vibração do ar que deixa os pulmões para, entre outras palavras, articular um: Obrigado. Denunciada pela iluminação do sol que escala o céu do Leste como um farol ligeiramente avermelhado. Sonolento, antes de se tornar amarelo, depois, branco, inacessível a olho nu quando alcançar maior elevação.
O Sol, voando em direção à constelação do Hércules, a uns 20 km por segundo, levando com ele seu colar planetário, ilumina a fraca coluna de vapor do café da manhã para compor uma nuvem e se precipitar como chuva em um ponto impossível de se conceber.
Onde pessoas não irão se dar conta de que uma parte ínfima, mas real, da chuva que cai se formou do vapor de uma xícara de um café da manhã. Ninguém saberá disso. Tudo improvável, mas ainda assim real.
Enquanto concepção de realidade que aprendemos, assimilada da escola, das falas, das práticas de cada dia, daquilo que nos disseram tantas vezes que é real e não sonho. Mas tudo inconsistente como a fraca coluna de vapor que sobe da xícara de café da manhã para formar uma nuvem de chuva que irá se precipitar onde ninguém é capaz de imaginar. Nem de observar se, por exemplo, cair longe da costa, em alto mar, fora da rota de qualquer navio.
A realidade que nos foi ensinada não resiste ao impacto de uma fotografia antiga. Lá estamos nós e os nossos amigos, mas não somos nós. Então quem somos? Somos os que foram e não são mais. Os que tivemos cada um dos átomos de nossos corpos retirados e substituídos sem nenhuma sensação de dor? Nenhum desconforto? Ou o desassossego que emerge em noites insones é essa substituição da matéria do corpo pelo material novo que chega das profundezas do espaço, transportados do choque de galáxias inteiras, do impacto de estrelas, da morte de estrelas desintegradas em meio a uma espessa nuvem de fumo? Ninguém pode dizer.
O cosmólogo tem alguma explicação, mas nem toda ela. O pastor, com sua oratória poética e refinada, o que, agora, é raro como ouro no leito de rios há muito isolados da vida selvagem, pode dizer algo. Mas longe de tocar a corda da sensibilidade para uma composição mais refinada.
O único que pode oferecer uma rota mais promissora é a literatura. A literatura que organiza o mundo em uma composição infinita, o espelho do que é o mundo, do que o universo (se existir um único) pode ser. Ou um multiverso, uma infinitude de universos, onde duplos de cada um de nós, observam uma nuvem de vapor que emerge de uma xícara de café da manhã e isso os leva a mergulhos num poço sem fundo como o que aprisiona a Lua em torno da Terra.
As pessoas se perguntam porque a Lua não cai na Terra e atribuem essa suposta impossibilidade a uma magia dos deuses. Mas a Lua, desde que se formou, ou chegou aqui, mergulha no interior de um poço sem fundo, curvado pela gravitação. Isso é o que pode perceber, em um nível mais abstrato de compreensão. Para qualquer das muitas outras coisas, por triviais sejam, não temos explicação.
Não sabemos, por exemplo, porque estamos aqui.
Imagem: Ben Grossen, surrealista belga.