Por que não somos todos Somália?

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Por  Gabriel Rocha Gaspar em Justificando – 

A Somália sofreu no último sábado (14) um dos atentados mais violentos da história. Na segunda-feira, o Twitter ferveu de questionamentos sobre a baixa cobertura midiática e a pouca comoção em torno das mais de 500 vítimas (entre mortos e feridos) do ataque ao centro da capital Mogadíscio. Representantes de ONGs, jornalistas e acadêmicos do mundo todo se perguntaram por que não surgiu rapidamente um “Je suis Somália” ou coisa do tipo.

Por que não somos todos Somália?
Destroços de explosão na Somália. Foto: Mohamed ABDIWAHAB / AFP

Infelizmente, porque culturalmente naturalizamos o sofrimento de pobre, preto, muçulmano e africano. Mas ainda que houvesse forte resposta emocional a tamanha violência politicamente motivada, começaríamos a trilhar o caminho de evitar que ela se repetisse? Certamente, seria melhor do que a indiferença. Mas bastaria? Tendo a achar que precisamos de mais do que nossos corações; precisamos analisar, com a cabeça, como a violência sistêmica, objetiva e perene, se converte em banhos de sangue. Qual o efeito que cada modalidade de violência tem sobre nós e por quê.

A pouca manifestação solidária que houve seguiu um padrão de tentar formar uma corrente solidária pela via da exclusão. Como se, incapazes de sentir empatia genuína pelo sofrimento daquelas pessoas histórica e ideologicamente construídas como sub-humanas, tentássemos estabelecer, na repulsa pelo assassino, a ligação com a vítima. Nas declarações de condenação da comunidade internacional – que, via de regra, chegaram com dois dias atraso, como se a empatia também tirasse folga no fim de semana – abunda a palavra “bárbaro”.




Embora hoje, associemos o termo a violento, desumano e cruel, “bárbaro” tem uma etimologia reveladora: vem do grego bárbaros, que quer dizer “estrangeiro”. Ou seja, bárbaro é sempre o “outro”, nunca nós mesmos. Ao atribuir este adjetivo a um atentado ou seu perpetrador, inconscientemente (ou não), o colocamos fora da comunidade humana; ele incorpora a figura do “outro” que, como tal, não é digno de identificação e, logo, empatia. Ou seja, esta comoção opera em chave negativa: a solidariedade com a vítima brota da negação da humanidade do algoz.

Será que o algoz é “outro” de fato? Ou criar o outro é o recurso psicológico que temos para lidar com a violência absoluta e, assim, nos abstermos de procurá-la dentro de nós mesmos? Não estou evocando uma solidariedade cristã do tipo “ame seu inimigo” a quem perpetrou tão covarde ato de violência contra civis inocentes. Estou dizendo que precisamos buscar meios de solidariedade positiva com as vítimas. E talvez, por culpa de anos de desconstrução da humanidade dessas pessoas, ela não venha pela via emocional. Talvez precisemos construir caminhos intelectuais de desenvolvimento da empatia.

Este exercício depende de uma análise um pouco mais profunda das condições somalis – sabendo que não vamos conseguir, sequer minimamente, apreender a complexidade da colcha de retalhos de descaso, imperialismo, colonialismo, racismo, diplomacia falha, crueldade institucional, ganância e hipocrisia que compõe a história recente da Somália (e da África, de forma geral). Trata-se de tentar fazer a solidariedade ultrapassar a comoção inicial para buscar ressignificar intelectual e objetivamente o jogo geopolítico que nos trouxe ao ponto em que estamos agora. Até porque, são grandes as chances de percebermos que o “bárbaro” e sua violência são menos estrangeiros do que parecem.

Al-Shabaab e a marginalização da institucionalidade

O governo local e a comunidade internacional apontam como responsável pelo atentado a milícia Harakat al-Shabaab al-Mujahideen (“Movimento da Juventude Guerreira”, em tradução livre), conectada à Al-Qaeda no Maghreb Islâmico (Aqmi) e ao grupo nigeriano Boko Haram. Mas, estranhamente, a organização não assumiu a autoria do atentado. De acordo com a rádio pública estadunidense NPR, que tem um correspondente in loco, há suspeitas de que a escala e a comoção causada pelo atentado tenham inibido o grupo, que não pode prescindir completamente das relações públicas em nome da hegemonização de sua leitura fundamentalista do Islã.

Isso porque, diferentemente do grupo Estado Islâmico, que apareceu como um relâmpago e dominou territórios distantes que eram estáveis até pouco antes, a Al-Shabaab foi um importante ator político dentro da precária institucionalidade de seu próprio país, onde a maioria da população nem se lembra do que é ter um governo de fato. Al-Shabaab foi um dos braços da União das Cortes Islâmicas, que governou e coordenou a aplicação da Sharia (lei islâmica) na maior parte do sul do país durante o ano de 2006.

Claro que para nós, ocidentais, a palavra Sharia causa calafrios. Imediatamente nos lembramos das decapitações, mãos decepadas, apedrejamento de mulheres “infiéis” etc. Mas há uma série de particularidades na história e na geografia da Somália que fizeram com que os tribunais religiosos fossem bastante populares entre a população do sul do país. A primeira, e mais óbvia, reside no fato de que a Somália vive em guerra civil desde 1991 – o que faz da lei (qualquer lei), um luxo.

Depois da queda de Siad Barre – que, com apoio soviético, se aferrou ao poder por mais de 20 anos, até ser derrubado por uma coalizão de grupos armados em 1991 -, o controle político, econômico e militar se dividiu entre chefes de clãs guerreiros. Em meio ao caos, intelectuais, líderes políticos e juristas de cidades importantes como a própria capital Mogadíscio formaram as Cortes Islâmicas para estabelecer algum controle político e social. Uma vez que não existia burocracia que pactuasse uma Constituição legítima, a religião era um ponto e convergência natural.

Como explica Stig Jarle Hansen, no livro Al-Shabaab in Somália, The History and Idelogy of a Militant Islamist Group, o caldo do islamismo militante já vinha fervendo no país desde a crise petrolífera do início dos anos 70, que enriqueceu a Arábia Saudita o suficiente para que Riad financiasse a expansão internacional de sua filosofia jihadista radical, o wahabismo.

Esta vertente do islamismo militante sunita, fundada e financiada pela dinastia Saud, que comanda a Arábia Saudita, prega a submissão do planeta inteiro à mais estrita interpretação da lei do profeta. É uma leitura fundamentalista e expansionista da Jihad islâmica, que inspira todas as frentes sunitas radicais, desde a Al-Qaeda até o Daesh. Ainda hoje, a Arábia Saudita financia qualquer imã (líder religioso) sunita que se disponha a abrir uma mesquita de linha wahabista, em qualquer parte do mundo.

E, claro, aplica sua filosofia domesticamente com precisão saudita – o que quer dizer que a família real e os negócios estão à margem da ira divina. Duzentas chibatadas é a pena para o consumo de álcool. Homossexualidade e adultério são passíveis de pena de morte. Mas quando o príncipe Majed al Saud infringiu todas as disposições da Sharia, não deu nada. Em setembro de 2015, ele promoveu uma festa regada a prostitutas, álcool e cocaína em Beverly Hills, que incluiu sexo gay, cárcere privado e ameaça de morte contra três funcionárias da mansão onde ele estava, que se recusaram a prestar-lhe favores sexuais.

Parêntese fechado, apesar da onipresença da doutrinação saudita, os petrodólares e o convite à guerra santa não foram suficientes para estabelecer na Somália, islamita milenar, a coesão em torno de uma corrente religiosa tão radicalmente exclusivista. A ainda mais antiga organização social em clãs impedia o pensamento monolítico.

Da organização política comunitária às afinidades pessoais, partes importantes da vida social somali passam pela relação patrilinear; pessoas que têm descendentes masculinos em comum se agrupam. Mas essa união em microestruturas é um obstáculo na formação da coesão macro-estrutural. Não à toa, tão logo conseguiu derrubar o presidente Barre, o movimento armado do início dos 90 se dissolveu nas lealdades familiares sem formar governo.

Duas administrações civis frágeis foram estabelecidas e ficou claro que viria guerra civil por tempo indeterminado. Com ela, chegou a fome, o risco de genocídio e o êxodo populacional – que gerou no vizinho Quênia, um mar de barracas chamado Dadaab, o maior campo de refugiados do mundo. Sob o pretexto de garantir a distribuição de alimentos da comunidade internacional à população e “fazer o trabalho de Deus” nas palavras do então-presidente George Bush (pai), Washington resolveu entrar em ação e comandar a Força Tarefa Unida da ONU.

Aproveitando que já estavam no terreno mesmo (e sem nenhuma relação com o fato de que a Somália possui a maior extensão costeira da África Oriental, com saída para o Oceano Índico e o Mar Vermelho), os Estados Unidos tentaram capturar um dos dois auto-proclamados presidentes do país, Mohamed Farrah Adid.

O resultado dessa tentativa improvisada de mudança de regime foi a batalha de Mogadíscio, retratada no filme Falcão Negro em Perigo – que, aliás, merece outro parêntese é. Para se ter ideia da carga de ideologia racista contida no longa, não há negros entre os marines; dos negros somalis, ninguém tem nome. Todos respondem pela alcunha skinny (magrelo), apelido no mínimo de mau gosto, em uma operação de combate à fome.

O fato é que a batalha de Mogadíscio, por mais heroica que pareça pela lente hollywoodiana, foi um fracasso retumbante, que custou dois helicópteros e 18 soldados às forças invasoras. Bill Clinton, que acabara de assumir a Casa Branca, aproveitou a comoção em torno do vexame para retirar as tropas, em março de 1994. Com calculada emoção, o novo mandatário disse que os corpos de soldados que “só queriam dar de comer a pessoas com fome” foram “dessacralizados por gangues de somalis armados”.

Durante o raro e breve período de ausência de ingerência militar externa que se seguiu, as milícias em guerra se dividiram em mais e mais facções, rachando de vez um país já ingovernável. Conforme alguns clãs tentavam criar um Governo Nacional de Transição (GNT), Mogadíscio sofria uma onda descontrolada de estupros, assaltos, saques e assassinatos, que levou à formação de uma força de paz da União Africana, capitaneada pela Etiópia.

Por se tratar um ex-império regional e um rival histórico, a participação etíope foi vista com péssimos olhos pela população, bem como o fato de que o outro governo (Governo Federal de Transição, GFT), tinha sido formado no Quênia, à revelia da população. Reconhecida pela comunidade internacional, a administração não tinha qualquer legitimidade interna. Percebendo a inquietação do povo, os islamitas impuseram uma política de tolerância zero com o crime e ainda compraram a briga contra a ingerência externa patrocinada pela ONU.

Mais do que a religião, foi este movimento institucionalista que empoderou os wahabistas. Formadas em meio a tamanho caos, as Cortes Islâmicas de aplicação da Sharia conquistaram a população ao virar a coisa mais próxima de um governo, ainda que funcionassem como ditaduras aristocráticas de um Judiciário fundamentalista.

Tão logo essas forças sentiram consolidada alguma hegemonia num país cindido pelos clãs, elas colocaram em prática a parte militante do wahabismo. Formou-se a União das Cortes Islâmicas (UCI). A nova organização engrossou a voz e declarou, no início de 2006, que as tropas de “manutenção da paz” seriam tratadas com hostilidade, fossem quenianas, etíopes, estadunidenses ou europeias. Em poucos meses, a organização já tinha conquistado grande parte do sudeste do país, incluindo Mogadíscio.

Depois de quase um ano de guerra total, tanques etíopes marcharam sobre Mogadíscio. No último dia de 2016, a UCI se viu obrigada a recuar em direção à fronteira queniana. A guerra – que contou, já nos estertores, com bombardeios norte-americanos – serviu para dissolver a ditadura das Cortes e restabelecer o Governo Federal de Transição.

Mas, já em fevereiro, ficou claro que, das sombras da clandestinidade, emergia uma guerrilha perigosa, quando cerca de 800 manifestantes saíram às ruas da capital para queimar bandeiras dos Estados Unidos, Etiópia e Uganda. No mesmo ato, homens mascarados fizeram ameaças de ataques a bomba contra Quênia e Etiópia.

Al Shabaab, precursor tático do grupo Estado Islâmico

Era o primeiro sintoma do nascimento da Harakat al-Shabaab, que inauguraria uma nova tendência do wahabismo militante: espalhar o terror de forma transnacional, como estratégia publicitária para reunir muçulmanos sunitas hostilizados e humilhados do mundo inteiro em torno da luta pela formação de um governo islâmico universal. Um califado que limparia o mundo dos infiéis e imporia a toda a humanidade uma interpretação fundamentalista e apocalíptica da lei do profeta.

O sucesso do Al-Shabaab nas relações públicas é inegável e certamente serviu de inspiração para o grupo Estado Islâmico. Prova disso é que, apesar d a invisibilidade midiática da jihad violenta na África – à época, ainda mais eclipsada pela Primavera Árabe e pela ascensão de outras milícias wahabistas no Oriente Médio -, sempre houve presença maciça de estrangeiros nas linhas da organização.

Um pesquisador citado por Stig Hansen recenseou militantes feridos em um hospital de Mogadíscio em junho de 2011 e descobriu 38 ocidentais e asiáticos, 125 africanos de outros países, um estadunidense e dois sauditas. Entre os mortos, a diversidade era ainda maior, com gente de Bangladesh às Ilhas Comores, passando por Grã-Bretanha, Bélgica, Suécia e Noruega. Descobriu-se, ainda, que entre as lideranças do grupo, havia veteranos da primeira Guerra do Afeganistão – ou seja, moujahadins ultra-radicais treinados diretamente pelo Pentágono para enfrentar a invasão soviética no final dos anos 70.

Pela metade de 2008, o grupo já havia feito o que o autoproclamado Estado Islâmico faria em 2015, deixando o mundo inteiro boquiaberto: aproveitar o colapso de um Estado para tomar de assalto vastas franjas de território, aliando geopolítica, publicidade, tática de guerrilha e a divulgação de atos de extrema violência pelas redes sociais. No ano seguinte, depois de vários atentados extremamente cruéis e midiatizados, a al-Shabaab seria declarada organização terrorista pelos Estados Unidos.

Apesar da clara ameaça que o grupo representava, apesar do fato de que suas táticas inspirariam outras jihads ultrarradicais, os Estados Unidos optaram por não declarar guerra. A força de ataque seria formada pela União Africana, supervisionada pela ONU e com “apoio tático” estadunidense.

Obama institui assassinato como política de Estado

Só que este “apoio tático” se transformou numa completa subversão das leis internacional – e mesmo estadunidense – sobre a hostilidade militar. De acordo com a Constituição dos EUA, um presidente não pode iniciar uma ação bélica sem o aval do Congresso; e consta no artigo 50 da Convenção de Genebra que, “se houver dúvida se uma pessoa é ou não combatente, ela deve ser considerada civil”.

O departamento de Estado comandado por Hillary Clinton sob a gestão Obama aproveitou a situação somali – e a pouca atenção que o país desperta da opinião pública internacional – para tirar estes “empecilhos burocráticos” do caminho do império e da indústria armamentista que o sustenta. A Somália, junto com o Iêmen, outro semi-Estado esquecido, virou campo de testes da guerra secreta dos drones.

Embora o nome escolhido pela estratégia de relações públicas de Washington tenha sido clean – target killings ou mortes direcionadas, em tradução livre -, a prática transformou assassinato em política do Estado americano. Conforme revelou The Intercept, a partir de documentos vazados da inteligência estadunidense, apenas 10% das vítimas dos drones eram alvos designados. Os outros 90%, são absolutos desconhecidos – ou melhor, civis, seguindo a terminologia de Genebra.

Como se não bastasse, este tipo de assassinato é feito em um território contra o qual os Estados Unidos não declararam guerra. Ou seja, eles significam significam que potencialmente o presidente dos EUA pode matar qualquer pessoa do mundo como num jogo de videogame. Depois deste vazamento, Obama foi obrigado a se explicar. Contradizendo abertamente as estatísticas de sua própria administração, admitiu as mortes de 116 civis ao redor do mundo, entre 2009 e 2015. Mas um único ataque em Mogadíscio matou 150.

Além das milhões de implicações éticas desta nova-velha tática de assassinar quem se bem entende, há a questão da imensa insegurança jurídica que ela acarreta. Levando em conta que a Al-Shabaab segue uma lei escrita – por mais cruel que seja sua aplicação da Sharia –, qual o efeito psicossocial do abandono deliberado da mais alta lei internacional (a que impediu o holocausto nuclear durante a Guerra Fria) pelo governo que invade com a promessa restaurar a ordem? E, pior, qual esse efeito no caso da Somália, cujo único período de supremacia do direito foi durante a ditadura das cortes islâmicas?

Movimentações suspeitas às vésperas do atentado

A curto prazo, o provável reforço do Al-Shabaab e da retórica wahabista radical. No longo prazo, corre-se o risco da obsolescência completa da legalidade por meio da consolidação da lei do mais forte. Talvez a Somália já esteja nesta segunda etapa, infelizmente. Talvez o silêncio da Al-Shabaab sobre o atentado de sábado seja de fato a constatação calada de um erro estratégico em um momento de possível consolidação social da sua ordem de contorno fascista.

Ou talvez estas sejam duas suposições ingênuas, que perdem de vista – não por preguiça, mas por falta de elementos de análise – o verdadeiro jogo geopolítico em curso. Para quem quiser tentar caçar o pelo do ovo, talvez seja uma boa pesquisar dois acontecimentos aparentemente desconexos. O primeiro é que, na véspera do ataque, o ministro da Defesa da Somália, Abdirashid Abdullahi Mohamed, e o chefe do exército, gal. Mohamed Ahmed Jimale, pediram demissão.

E o outro, talvez mais conspiratório, mas também mais intrigante, é o fato de que a Turquia do autocrata Recep Tayyip Erdogan, primeiro país a disponibilizar leitos e transporte para as vítimas, abriu há apenas 15 dias sua maior base militar internacional, justamente em Mogadíscio.

Especialista em guerra de fachada contra organizações wahabistas, suspeito de ter permitido atentados contra seu próprio povo em nome de interesses políticos e econômicos, Erdogan está investindo US$ 50 milhões no treinamento de 10 mil soldados somalis para enfrentar a Al-Shabaab – que hoje domina apenas 10% do território que já teve. Não há nenhuma insinuação aqui, mas o investimento só retorna se o inimigo existir.

Se a violência vem de todos os lados, por que não nossa indignação?

A pergunta que surge de tudo isso é: se toda a geopolítica global se tornou uma teia de violência crua, por que nos incomoda a violência da Al-Shabaab, da Al-Qaeda e do tal Estado Islâmico enquanto ignoramos a da Arábia Saudita, dos Estados Unidos, da Europa e da Turquia, de onde emana a distopia? Por que vemos imundície completa nos massacres promovidos pelo “outro” imaginário, mas aceitamos que se varra para baixo do tapete a igualmente brutal violência daquele que identificamos como “um de nós”? Um palpite: por preguiça intelectual pré-condicionada. Porque estamos exageradamente condicionados a uma leitura não-racional do mundo.

A violência que nos impacta é a que vem de forma subjetiva e sensorial; é aquela que a gente vê, que tem cheiro, que tem lágrima desesperada. Se vier acompanhada de violino, ainda melhor. Choca aquela violência que é ressignificada pelo em nossa cabeça pela emoção e não pela razão. É óbvio que o Al-Shabaab não é o “outro”; a violência dele não está, de forma alguma, isolada deste mundo. Se ele para nós ele é o “outro”, é de forma mistificada: estamos usando a existência do não-humano como parâmetro da nossa humanidade. E aí, necessitamos do “outro” como o Batman, aquele playboy fascista, precisa do lúmpen proto-anarquista Coringa. Precisa da desordem completa para justificar seu esforço paranoico-compulsivo de reorganização do mundo.

Por isso, criamos o “não-humano” o tempo inteiro.

Este longo texto pode parecer, mas não é insensível. É um apelo pelo compromisso com o potencial revolucionário da sensibilidade. Não basta que encontremos a melhor hashtag para expressar nossa solidariedade às vítimas do horror que assola a Somália. Precisamos buscar as raízes da nossa falta de compromisso com o estancamento do sangue. É só a partir daí, que conseguiremos enfrentar objetiva e intelectualmente a barbárie que nos é inerente.

Gabriel Rocha Gaspar é Jornalista e mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle Paris 3.

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