Publicado no Diário do Centro do Mundo, do blog Farofafá, da Carta Capital. O autor, o jornalista Pedro Alexandre Sanches, trabalhou dez anos na Folha –
Estava eu no cinema neste sábado, assistindo ao lindo filme Yorimatã, do moço fluminense Rafael Saar, sobre as espetaculares compositoras Luhli & Lucina, mulheres-segredo guardadas na fabulosa caixa de Pandora chama música popular brasileira. (Caso as palavras acima lhe provoquem curiosidade, escrevi sobre Luhli & Lucina na revista Trip, em 2011.)
Yorimatã está na programação da famigerada Mostra paulistana, patrocinada entre outros pelo jornal conservador Folha de São Paulo. Antes do início do filme, estampou-se na tela o comercial atual do jornal, que há tempos me intriga, assusta e desagrada. Não sei se todo mundo percebe que é uma peça de proselitismo de extrema direita – aos leitores da Folha, só é dado discordar do jornal quando têm opiniões mais reacionárias que o guru de papel, contra casamento gay, a favor de pena de morte e contra cotas raciais (uma atriz negra editorializa essa última questão à direita, como se tal posição reativa representasse a maioria dos negros brasileiros).
Pois bem, ao final do reclame, quando o locutor afirma “siga a Folha, porque ela (…) sempre publica opiniões divergentes”, o cinema INTEIRO caiu na gargalhada. Alguns evoluíram do riso debochado para a vaia aberta. Perguntei aos amigos tuiteiros se a cena que testemunhei era novidade: disseram que não, que o muxoxo do público contra a Folha tem se repetido em diversas sessões da Mostra.
É razoável supor que os espectadores de cinema estão reagindo, nesse riso frouxo, ao estrepitoso caso recém-acontecido entre a Folha e seu (ex)colunista Xico Sá, fartamente disseminado na mídia não-tradicional, não-impressa, não-tucana. Xico não pôde externar apoio à reeleição de Dilma Rousseff em sua coluna e preferiu se desligar da Folha, após décadas servindo ao jornal.
Tal qual faz com os leitores cabrestados na propaganda reaça, a Folha só permite a seus colunistas (vide Reinaldo Azevedo, para nomear um dos inomináveis) fazer proselitismo se o proselitismo, digo, o jornalismo investigativo, crítico e imparcial tiver por missão apontar concordância, simpatia ou amor tresloucado pelo lado tucano-reacionário.
O caso Xico instigou outra ex-colunista da Folha, Marilene Felinto, a contar sua própria experiência de afastamento da Folha, acontecida em 2002, quando da primeira vitória do presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva. Também publicada e reverberada na mídia não-impressa e não-tucana, Marilene relatou episódio análogo de censura política por parte do jornal.
O texto de Marilene que em 2002 motivou o pito do jornal e o pedido de demissão ~voluntária~ (para usar termo em voga) da colunista segue exemplar até hoje, 12 anos depois: “É proibido comemorar porque jornalistas não comemoram, criticam” (mas em qual manual de conduta está mesmo escrita essa regra?, no da Folha?).
Marilene cita de passagem em seu texto um episódio da psicanalista Maria Rita Kehl com outro órgão para-oficial do PSDB, o jornal O Estado de São Paulo, em 2010, por ocasião da eleição de Dilma para suceder Lula no governo do Brasil. Era a mesmíssima ladainha: Maria Rita não resistiu a 15 minutos no Estadão desde que começou a publicar textos com viés de aprovação ao trabalho que o PT vinha (vem) fazendo. Não preciso ser redundante e explicar que o afastamento de Maria Rita, formidável psicanalista e escritora, só reverberou na mídia não-tucana, não-escrita, não-televisada.
Os casos Xico (e Maria Rita) e Marilene me fizeram relembrar, refletir e ter vontade de relatar meu próprio desligamento da Folha, há dez anos, após dez anos de serviço ao jornal, no qual comecei na profissão e aprendi muito do que sou (e do que não quero ser) como jornalista. Meu caso, diferente dos dos colegas, não incluiu rompimento explícito e ocorreu em entressafra eleitoral, no final de 2004, exatamente metade do primeiro governo Lula (feitas as contas, vivi a era Fernando Henrique Cardoso inteirinha lá dentro).
Na época eu não entendi direito o que estava acontecendo, mas quanto mais o episódio se afasta no tempo mais tenho a convicção de que também saí por motivação e discordância política, embora eu tivesse sido, naqueles dez anos, um mero jornalista cultural que não metia o bedelho em política (e tomava bronca mandada por emissários se tentava meter).
No final daquele 2004, houve na Folha um enorme passaralho, o nome calhorda que os jornalistas damos às demissões em massa dentro da redação. Não fui um dos demitidos. Fui preservado naquele enésimo corte que presenciava, mas aquele foi um ~passaralho~ especialmente pesado. Algo que não era comum aconteceu: foram demitidos diversos editores, sub-editores e editores assistentes, ou seja, gente de confiança dos donos do jornal.
Dois momentos daqueles dias de terror ficaram gravados para sempre na minha memória.
a) Numa reunião com a redação em que justificava a necessidade dos cortes, o editor-dono da Folha afirmou que nós (eles, o jornal, e não nós, os jornalistas) enfrentávamos uma “travessia do deserto”, que seria sofrida, mas, entendemos, tinha hora para acabar. A crise era braba (nas redações, a crise é SEMPRE barba), nós sabíamos, mas não consegui compreender que diacho era aquela tal “travessia do deserto”.
b) Num encontro de corredor com o então ombudsman do jornal, um cara que eu admirava e admiro muito, ele vaticinou: “A Folha perdeu e ainda perderá muitos bons profissionais nos próximos anos”. Novamente, não consegui compreeender, mas certamente ele, muito mais experiente que eu, fazia ali no ato uma leitura precisa que só consegui fazer ao longo dos anos, encaixando pecinhas, tomando paulada na cabeça.
Pouco tempo depois do ~passaralho~ da ~travessia do deserto~, ainda em 2004, saí da Folha por vontade própria, para ir trabalhar na CartaCapital.
Veio 2005. Veio a entrevista do político Roberto Jefferson, hoje presidiário, à colunista Renata Lo Prete, hoje âncora grã-tucana da GloboNews. Veio o “escândalo do mensalão”, R$ 101 milhões, “o maior escândalo da história do país”.
Vagarosamente comecei a entender assimilar o que era a “travessia do deserto”. O deserto era o primeiro governo Lula, que seria encerrado ruidosamente em 2006, para nunca mais voltar – a travessia. Ao final da “travessia do deserto”, que duraria ainda dois anos, viria o paraíso na Terra para os donos da mídia, digo, para nós que trabalhávamos na Folha.
Não esperei para ver com meus próprios braços o paraíso.
Nem as coisas aconteceram exatamente como pretendiam os grão-tucanos instalados nas redações do aparato GAFE – Globo, Folha, Abril, Estadão etc. Estamos em 2014, a água secou em São Paulo e o deserto petista continua sendo atravessado.
De volta aos “delitos de opinião” cometidos na mídia de Tucanistão por Marilene Felinto, Maria Rita Kehl e Xico Sá, o fato de eles acontecerem e/ou virem à tona em época eleitoral consiste no rabo felpudo da raposa aparecendo manchado de sangue por debaixo do tapete persa do galinheiro.
Jornalistas não têm um pingo de liberdade na mídia comercial braZileira, a não ser que pensem exatamente igual a seus patrões. São mantidos a pão e água nas masmorras glamurosas de Tucanistão, falando mal sobre tudo e sobre todos (que não pertença ao território imaginário controlado e ultravigiado de Tucanistão). Só tem sobrevivência nas redações se forem ou se fingirem tucanos ou se, no mínimo, fizerem diligentemente de conta que não são não-tucanos.
Pense num ou numa jornalista de que você gostava 12 ou 10 anos ou 6 anos atrás e do(a) qual nunca mais ouviu falar nem sabe por onde anda. Sim, como avisava o então ombudsman em 2004, muitos bons profissionais sumiram das redações nos últimos anos, sem que talvez você se desse conta disso. E eu afirmo a você: essa ou esse jornalista de que você não sabe o paradeiro é qualquer coisa nesta vida, menos tucano.
De 12 anos para cá, os índices de desemprego no BraSil só fazem se tornar cada vez menores, cada vez mais positivos para um país que ouse sentir orgulho de si mesmo. Mas os mesmos índices são inversos e desesperadores quando dizem respeito especificamente aos jornalistas, e mais ainda aos pobres jornalistas que calhamos de ser petistas ou derivados.
De minha parte, durei quatro anos na CartaCapital e desde então vivo entre o desemprego (com muito orgulho) e a vida de freelancer. Pode me xingar de militante pago quando trabalho em campanha do PT – eu sei e você sabe que você não me xingava de tucano quando eu era militante ~cultural~ pago pelo PSDB ou, pior, pelo DEM.
A vida frila é solitária, mas cada dia menos solitária – me encontro todo dia com ex-colegas desses dos quais você que é marionete da mídia tucana nunca mais ouviu falar. Sempre que, nesse intervalo, escrevi textos avulsos para empresas da mídia corporativa foi porque amigos ainda instalados lá dentro driblaram o garrote tucanistanês (por exemplo, em várias colaborações na hoje extinta Bravo!, da Abril).
Tive uma coluna mensal suspensa na revista Cult pouco tempo depois de uma reforma gráfica na publicação, sob o pretexto doidão de que “estamos com uma série de mudanças, inclusive visuais, formato etc.”. Era a esquina 2009-2010 e eu vinha escrevendo uns textos tipo esses “As bruxas, elas existem ou não?” e “As novas donas do pedaço“, que, sei lá, entende?… (Sugiro que você procure saber sobre relações cruzadas entre a Cult e assessorias de comunicação do PSDB.)
Já vivi diversas situações desse tipo (alô, Yahoo! Brasil), de que não gosto de me queixar porque são exemplos de comunhão de males: eles não “gostam” de mim e eu não “gosto” deles, então vamos em frente. OK, “gostar” não é um verbo que deveria entrar em questão aqui, mas…
Fato incontestável é que eles deixam de “gostar” de mim quando escapa nalgum texto alguma asa petista minha (ah, se minha asa fosse tucana…) – o mesmo que já aconteceu com Marilene, Maria Rita, Xico e uma infinidade de jornalistas que talvez não abram o bico pelo eterno medo do eterno desemprego, esse mesmo que já é uma realidade mais que palpável, inclusive, veja que ironia, entre jornalistas tucanos e/ou pseudotucanos.
Como diria o Bandido da Luz Vermelha, quem tiver de sapato não sobra: o Quarto Poder vai implodir, já implodiu.
O que esta reflexão tenta mostrar, o tempo todo, é um único e prosaico dado: não existe liberdade de expressão na mídia corporativa braZileira. Não existe liberdade de imprensa em Tucanistão. Se ela existe (e muito limitada), é vivenciada apenas por seus cães de guarda de plantão, como são atualmente os ex-roqueiros Lobão e Roger Moreira e os ex-humoristas Marcelo Tas e Danilo Gentili, que vivem de cuspir (e/ou mandar cuspir) xingamentos contra petistas, esquerdistas e, er, comuniZtas, até mesmo como tática ~esperta~ para despistar que eles próprios são funcionários ativos dos pravdas tucanistaneses, via Band, SBT, Veja etc.
Se na mídia corporativa trans-braZileira você for ou se fingir de tucano, estará camuflado na paisagem e poderá passar por neutro-imparcial-plural, mesmo que viva de vociferar tucanidades pré-históricas. Se for petista ou qualquer outra coisa que fira os capatazes da reaçaria júnior (Marinho Jr., Frias Jr., Civita Jr., Mesquita Jr.) que corrói o jornalismo de dentro para fora, CORTEM-LHE A CABEÇA!
O diacho, caros capatazes, é que nossas cabeças já rolaram há muito tempo, e mesmo assim continuamos pensando, pensando, pensando. A gargalhada do público culturete-folhete da Mostra durante a projeção da história libertária femininíssima de Luhli & Lucina mostra que, percalços à parte, somos cada dia mais ouvid@s e compreendid@s.