Por que a polícia de Nova York vira as costas ao prefeito?

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Por Terrel Jermaine Starr – Alternet, reproduzido pelo Carta Maior – 

 

Violenta, racista e acostumada à impunidade, corporação não tolera governante que optou por constituir uma família multirracial.

Tiocfaidh ár lá 1916 - Flickr

Em setembro de 1992, a Associação Beneficente dos Policiais (Patrolmen’s Benevolent Association) organizou a invasão da prefeitura de Nova York, por  milhares de policiais, em protesto contra a proposta do então prefeito, David Dinkins, de criar uma agência civil independente para investigar abusos policiais. Os oficiais pisotearam carros, derrubaram barricadas e ocuparam a ponte do Brooklyn. Entre as queixas estava o fato de Dinkins recusar-se a dar-lhes armas semi-automáticas.

Uma das palavras de ordem era “O prefeito está quebrado” (“The Mayor’s on Crack”). O ex-prefeito relatou também que muitos agentes e oficiais o chamaram de “preto” [nigger]. Ele acusou Rudy Giuliani [que seria eleito prefeito em 1994] de estar envolvido com os policiais e levá-los quase ao motim.

“Será que os policiais teriam agido assim se o prefeito fosse branco?”, perguntou em seu livro de memórias, Vida de um prefeito: governando o magnífico mosaico de Nova York (A Mayor’s Life: Governing New York’s Gorgeous Mosaic). “De modo algum. Se tivessem feito isso com Ed Kock, teriam sido todos presos.”

Ironicamente, o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD, na sigla em inglês) agiu com desrespeito semelhante com o prefeito atual, Bill de Blasio – que é branco. Embora não tenha chegado exatamente ao mesmo nível de violência e fúria com de Blasio, a luta contra ele não é menos virulenta. O ex-prefeito Rudy Giuliani, o presidente do sindicato do NYPD, Patrick Lynch, e muitos outros da elite do poder no Departamento de Polícia de NY veem em de Blasio o que enxergavam em Dikins: um político não-branco que ousa desafiar o velho e bom sistema de policiamento com impunidade.

Embora de Blasio não seja negro, sua família é. Sua mulher, Chirlane McCray, a filha, Chiara, e o filho, Dante, são parte da mesma população que o NYPD vem brutalizando há décadas. De Blasio fez campanha em favor de uma reforma no sistema policial e o adolescente Dante figurou numa peça publicitária declarando que, se eleito, seu pai acabaria com os “enquadros” para revistas. Uma vez prefeito, de Blasio colocou um fim à defesa dessa tática de policiamento na cidade. Os agentes e oficiais do NYPD viram nisso uma ofensa pessoal. Daquele momento em diante, ele tornou-se o Inimigo Público nº 1 do NYPD.

No começo de dezembro, depois de um tribunal decidir pelo não indiciamento do policial que causou a morte de Eric Garner, de Blasio expressou, numa igreja de Staten Island, aquilo que muitos pais negros nova-iorquinos vêm dizendo há anos a seus filhos: que teme pelo filho, se ele algum dia for parado pela polícia.

De Blasio e sua família: , Dante e
De Blasio e sua família: Chirlane, Dante e Chiara
“Isso me toca profunda e pessoalmente”, disse ele. “Estava outro dia na Casa Branca e o presidente dos Estados Unidos, que conheceu Dante há alguns meses, virou-se para mim e disse que Dante o fazia recordar-se de si próprio na adolescência. Disse ainda: sei que você vê essa crise por uma lente muito pessoal. Respondi que sim. Porque, durante anos, Chirlane e eu tivemos de conversar com Dante sobre os perigos que ele poderia enfrentar. Um rapaz bom, jovem obediente à lei, que nunca pensaria em fazer nada de errado, e apesar disso, por causa da história que ainda paira sobre nós, enfrenta esse perigo. Tivemos que treiná-lo, literalmente, como têm feito famílias da cidade inteira, durante décadas, para ser especialmente cuidadoso em qualquer encontro que venha a ter com policiais – cuja função seria protegê-lo.”

Essa declaração – expressa cuidadosamente e articulando a vida como é vivida por muitos negros novaiorquinos – enfureceu o NYPD e sua enraizada cultura de supremacia branca. A polícia, em especial o chefe do sindicato, Lynch, declarou uma guerra vil ao prefeito que ousa questionar o status quo. A sugestão de que policiais possam ser despojados do seu ilimitado direito de agir como criminosos é assustadora para os agentes que vêm brutalizando minorias em Nova York, impunemente, há anos. O que há por trás dessa fúria? Não consigo pensar em nada além de racismo. Foi um desrespeito profundo os policiais virarem as costas a de Blasio quando ele falou no funeral do oficial Rafael Ramos [e de Wenjian Liu], mas eles vão mais longe, ao instigar o ódio de raça.

Como relatou Max Blumenthal, da Alternet, no fórum online On Thee Rant, oficiais do NYPD, da ativa e aposentados, costumam usar linguagem racista ao referir-se a de Blasio e a afro-americanos:

Quando o prefeito contratou uma ex-colaboradora de Sharpton, Rachel Noerdlinger, como chefe de gabinete de sua esposa, Chirlane McCray, e defendeu Noerdlinger de uma torrente de ataques da imprensa por seu relacionamento com um ex-presidiário e os posts no Facebook de seu filho referindo-se aos policiais como “porcos”, o ódio do NYPD explodiu.

No forum Thee Rant, os comentários concentraram-se na raça de Noerdlinger (ela é negra) e no seu gênero. Enquanto alguém a descrevia como “uma porra de uma erva daninha num depósito de lixo de vida baixa POS”, outro oficial escreveu sobre ela e seu parceiro: “A cadela vai cutucando a bunda do mofo [do inglês mother fucher], se é que ainda não fez isso, para fazer barulho de negros no tribunal e ele começará a massacrá-la, e então o júnior irá saltar e agarrar seu pescoço!”

“Eles nasceram PR_ _OS, vivem como PR_ _OS e geralmente morrem como PR_ _OS”, acrescentou outro policial. Essa linguagem era típica dos comentários no fórum quando o nome de Noerdlinger era mencionado.

Os fatos e números falam por si. Nos últimos 20 anos, o NYPD praticou brutalidade impunemente contra minorias, no governo dos prefeitos de Giuliani e Bloomberg. De 2001 a 2013, 81% dos que receberam intimações em consequência da política de “janelas arrombadas” eram negros ou latinos; nove entre dez dos que foram parados para revista não eram culpados de crime nenhum. Outro relato do New York Daily News revela que, nos 179 tiroteios que envolveram policiais nos últimos 15 anos, 86% das vítimas eram negras ou hispânicas quando havia informação sobre raça. Apenas três policiais foram indiciados naqueles casos; só um foi condenado.

A mulher, o filho e a filha do prefeito de Blasio poderiam facilmente estar entre essas estatísticas, e de Blasio sabe disso. Seu desejo de promover uma reforma na polícia não se deve apenas à proteção das minorias; ele sabe que os membros de sua família negra correm sempre o risco de ser vitimizados por um policial perigoso. Para ele, é uma questão pessoal. Mas é também pessoal para a estrutura de poder branco no NYPD. Eles odiaram quando Dinkins tentou conter práticas abusivas e tornar a polícia mais responsável, e ficam talvez mais enfurecidos quando o prefeito tenta lhes dizer que têm de tratar melhor pessoas negras e mestiças.

O NYPD não gosta sequer dos seus próprios oficiais negros. Em 2004, 50 policiais negros e latinos entraram com uma ação coletiva contra o NYPD alegando preconceito racial no sistema disciplinar do departamento; a prefeitura fez um acordo de 25 milhões de dólares para encerrar o caso. Se o NYPD discrimina seus próprios policiais, não é exagero acreditar que não gosta nada de servir um prefeito que deseja acabar com a discriminação racial em suas fileiras. Creio que Lynch e muitos outros no NYPD não odeiam só de Blasio — eles odeiam sua família, por representar uma população da cidade que o prefeito manifestou interesse pessoal em proteger.

Para policiais racistas, o fato de de Blasio levar sua família negra para a mansão da prefeitura no Upper East Side, bairro exclusivo e branco, é o equivalente a um latifundiário casar-se com uma escrava negra e trazê-la para dentro da Casa Grande. Demandar uma reforma no NYPD é como pedir a donos de escravos que aceitem a Abolição da Escravatura.

Antes de seguir adiante, é preciso dizer como entendo o policiamento nos Estados Unidos. Considero o policiamento como descendente do US Marshals Service, agência acusada de perseguir escravos foragidos. Na minha visão, o policiamento nas cidades norte-americanas lembra muito os dias de perseguição aos escravos. Para muitos policiais brancos uniformizados, a arma fornecida pelo departamento equivale ao chicote do feitor.

Por décadas, o NYPD vem batendo em negros e latinos nova-iorquinos para submetê-los, e estamos fartos disso. Os protestos em Nova York refletem essa frustração e é isso que é tão ameaçador para Lynch. Ele sabe que o homem que matou os dois policiais no Brooklyn não tinha conexão com os protestos, mas tratou de criminalizar os manifestantes, assim como o NYPD faz, cotidianamente, com negros e mestiços nova-iorquinos. A tentativa de Lynch de criminalizar os manifestantes pacíficos é uma tática diversionista extraída diretamente do manual de supremacia branca. Não está funcionando e Lynch percebe isso.

Sabemos que de Blasio não é perfeito. Os ativistas não gostaram quando ele pediu que parassem de protestar, até que os dois oficiais assassinados fossem enterrados, mas a maioria não o vê como o problema principal. Os manifestantes querem reformar o sistema, com de Blasio no governo ou não.

Os ataques contra ele não têm nada a ver com sua política. Trata-se, isso sim, de um prefeito que expressa publicamente a preocupação com sua família negra, a qual é tão semelhante aos nova-iorquinos que os policiais vêm aterrorizando há anos. Para Lynch e muitos no NYPD, a possibilidade de alguém tentar colocar rédeas nessa brutalidade é insuportável.

Terrel Jermaine Starr é editor senior no AlterNet

Tradução Inês Castilho – Outras Palavras

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