Por que tantos Guarani preferem não viver

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Chaga dos anos 1980, suicídio de jovens indígenas (feitiço do entardecer vermelho) volta a crescer. Intrusos na própria terra, cercados por desertos de soja, eles veem tradições apagadas e futuro convertido em eterno lusco-fusco. Vida torna-se fardo

Por Caio Araujo, compartilhado de Outras Palavras




Imagem: João Ripper/Survival

Reportagem especial de Caio Araujo

Título original: Vidas desgraçadas

Os juritis sobrevoavam a aldeia Jaguapiru naquele 16 de julho, um dos poucos dias nublados de 2017 no cerrado sul-matogrossense. Tonico foi acordado às três e quinze da madrugada por um telefonema da Funai. As gêmeas Yara e Tauane, de 16 anos, haviam se matado no final da tarde anterior. Pularam do alto de um galho de angico, cada uma para um lado, com a corda no pescoço. Uma semana antes, o irmão Kayke, de 17, tinha se estrangulado naquela mesma árvore. Nenhum deles deixou bilhetes de despedida ou pedidos de desculpa.

Kauê guarda como lembranças dos filhos a bola de futebol que Kayke adorava chutar e a flauta que Tauane assoprava quando se sentia desolada. O pai vive com a esposa Uyara e agora seis filhos numa casa de taipa nas imediações da aldeia onde criam galinhas e um porco e são assistidos pelo Bolsa Família. Uyara não quis tocar no assunto que já trouxe a visita de quatro repórteres a sua casa; em todas elas passou a bola para o marido, igualmente sucinto nas respostas. “Olha moço, eu não sei o que te dizer”, repetiu duas vezes. “Via meus filhos tristes de vez em quando e achava normal, criança não é só alegria”. Pergunto se sente alguma culpa e o homem rebate, embrutecido. “Sofro a dor do pai que perde três filhos do mesmo jeito, mas não sei te dizer no que falhei. Não me ausentei. Minha culpa foi não ter visto chegar o mal invisível”.

Kauê é um Kaiowá que há três anos deixou a reserva para cultivar hortaliças e criar as galinhas e o porco. Veste calças surradas, a camisa reserva do São Paulo Futebol Clube e um boné do MST. Fala poucas palavras em guarani e tem as mãos calejadas de agricultor. Uyara o ameaçou abandonar por causa do alcoolismo. Quando ele parou de beber, ela começou e não parou. Expulsou-a de casa depois que a pegou com um estilete na mão apontado para Tauane, acusada pela mãe de roubar-lhe o marido. Foi vista pelas filhas, semanas depois, mendigando nas ruas de Dourados, e pelo pai, num puteiro da cidade, antes de voltar para casa arrependida. É Tonico quem me conta a história.

De acordo com relatório do Conselho Indigenista Missionário, houve um aumento de 20% nos casos de suicídios nas aldeias brasileiras de 2016 para 2017, totalizando 128 suicídios no país. Amazônia (54 casos) e Mato Grosso do Sul (31), estados com as maiores populações indígenas no Brasil, lideram esse ranking. A taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas (15,2 para cada 100 mil habitantes) é quase o triplo da média nacional entre não indígenas (5,2), segundo o Ministério da Saúde. A maioria das mortes por suicídio entre os nativos (44,8%) ocorre na faixa etária dos 10 a 19 anos, enquanto no panorama nacional, adultos de 20 a 39 anos respondem pela maior porcentagem dos registros. Esses dados foram coletados durante a minha visita à reserva, em julho de 2017. Estão, portanto, desatualizados. De lá para cá, como indicam algumas reportagens, o cenário piorou.

A reserva indígena de Dourados (MS) é a maior reserva urbana do país, com três mil hectares e uma população de 18 mil índios. Foi uma das primeiras a serem demarcadas, em 1917, pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão extinto em 1967 quando da criação da Funai. A reserva divide-se em duas aldeias: Bororó e Jaguapiru. Eu só estive na segunda. A área foi inicialmente destinada aos Kaiowás que já habitavam a região, e posteriormente foi ocupada pelas etnias Terena, Guarani-Kaiowá e, em menor proporção, Bororo. Está situada às margens dos córregos Laranja Doce e São Domingos, afluentes da bacia do rio Brilhante.

A região de Dourados é historicamente marcada pela tensão entre nativos e fazendeiros. De um passado cravado na pecuária, o Mato Grosso do Sul tornou-se uma potência agrícola a partir da década de 1970, como quase todo o centro-oeste, em boa parte graças às técnicas de fertilização de solos pobres desenvolvidas pela Embrapa. Embora a mecanização do campo seja uma realidade presente no Brasil já há algum tempo, algumas culturas beneficiaram-se sobremaneira dela, casos da soja, milho e cana, três dos principais itens exportados pelo Brasil.

O agronegócio brasileiro sempre foi, desde a Colônia, voltado para o mercado externo, mas a soja, em particular, é ainda mais. O Brasil tem dois Uruguais de soja plantada, 34 milhões de hectares, só de soja, cujas safras anuais cumprem com o que delas se espera: equilibrar a balança comercial. Esta é a função da soja brasileira: pagar as nossas importações. E Dourados é uma das fazendas que sustentam a balança.

Com 225 mil habitantes, 90% dos quais no perímetro urbano, o município conta com diversos edifícios comerciais, bancos, faculdades e condomínios, traços de uma urbanização tardia, mas avançada, nessa cidade que detém o terceiro maior PIB do estado, escorado na agropecuária, em torno da qual os serviços urbanos giram em torno. Também em função disso, até quem não é empregado do agronegócio, mas o tem como cliente, enxerga nele o motor de desenvolvimento local e amiúde compra o discurso dos produtores de que o agro é a vocação nacional e quem a ele se interpõe atrapalha o crescimento. Que os índios já têm terra demais e são improdutivos, é voz corrente entre os que defendem que permaneçam confinados à reserva e deixem o homem do campo arregaçar as mangas e trabalhar pelo país.

Os primeiros suicídios de jovens indígenas em Dourados foram denunciados pelo líder guarani Marçal de Souza no início dos anos 1980, período que coincide com a expansão da soja na região. Desde então os conflitos fundiários têm sido a causa óbvia por trás das mortes, embora muitas vezes os próprios índios não façam essa relação. Para o pajé kaiowá Getúlio Juca Ava Poty Vera, cuja mãe se matou deitada numa folha de bananeira, o suicídio (arapoju) é uma doença invisível, um feitiço, que ataca os fracos em dias de entardecer vermelho e deve ser combatida com oração (jeovasa).

O antropólogo guarani Tonico Benites, minha principal fonte para a produção desse texto, aponta outra causa mais premente: a miséria. Ele acompanha desde os anos 1990 relatos de jovens que se mataram na aldeia onde cresceu, em geral na transição para a vida adulta. “Matavam-se para se livrar do fardo de viver”, diz. “A vida aqui era terrível”. Os casos diminuíram quando os programas sociais chegaram para atenuar a pobreza e agora voltaram a crescer por motivos que às vezes soam banais, mas na verdade escondem a condição de vida a que permanecem submetidos numa terra demarcada e nem por isso protegida. Tonico me relata o caso de uma senhora de 72 anos atendida no CAPS após uma tentativa de suicídio frustrada. O motivo? O filho tinha feito uma vasectomia.

Das quatro etnias da reserva, os Terena são de longe os que mais se incorporaram ao modo de vida dos brancos, vide o rompimento com as crenças tradicionais. Das seis igrejas neopentecostais que vi na aldeia Jaguapiru (cachorro magro, em guarani) todas são ministradas por terenas. Essas igrejas entraram na aldeia com programas de apoio a quem sofre de alcoolismo, suprindo o que saúde pública tarda em prover. Hoje, estima-se que 25% dos nativos no Jaguapiru são evangélicos.

Entre os Terena, há quem pense que a conversão lhes trouxe um tipo de proteção a que as outras etnias não fazem jus e, por consequência, criou-se um tipo de concorrência entre elas que antes não existia, ainda que tradicionalmente a convivência jamais tenha sido de todo colaborativa. Cada etnia preserva suas tradições e respeita as demais, sem compartilhar dos hábitos e vivências delas. Talvez derive daí a ideia de uma reserva recortada em territórios separados para cada povo nativo. Não que não haja intercâmbio ou mesmo que a circulação dos membros se restrinja à zona demarcada. É evidente o contato entre etnias. Casamentos interétnicos são comuns. Os Guarani-Kaiowás, hoje o segundo maior povo indígena do Brasil (os Tikuna, da Amazônia, são o primeiro), surgem a partir da constante união matrimonial de dois grupos precedentes. Como esses povos têm uma proximidade territorial histórica, o matrimônio entre eles é mais comum do que entre outras etnias, o que não significa a inexistência de diferenças culturais. Muitos guaranis não são e não aceitam ser kaiowás. Reconhecem-se tão somente como guaranis. A recíproca é verdadeira, embora os kaiowás sejam, numericamente, uma etnia menor.

Ainda assim não se pode concluir que tal contato seja estimulado nem muito menos crer num mundo idílico em que os povos nativos cooperam entre si e vivam em plena harmonia, como se fossem uma única nação. Nada mais falso no Jaguapiru, onde cada etnia vive separada. O constante preconceito do qual reclamam sofrer dos brancos – real, não há dúvida – também praticam entre si. Os Terena, pela adaptação às novas normas de vida, passaram a ter sua “indiginiedade” contestada, como se tivessem se tornado menos indígenas que os demais. Os Kaiowás, por não demonstrarem a mesma disposição em mudar, são culpados pelo próprio atraso, porque não aceitam as oportunidades que lhes são dadas. Não é uma questão de civilização ou atraso. Esse embate é falso. É mais uma questão de prisma. Os Kaiowá se incomodam com as novidades impostas. Os Terena não se sentem tão coagidos e vislumbram algo de positivo nessas mudanças. E essa diferença interpretativa ajuda a explicar por que são esses e não aqueles os índios que, não livre de prejulgamentos, tentam se integrar à tão difusa modernidade, que nesse caso em específico significa contribuir com o PIB de Dourados, a quinze quilômetros da reserva, nem que seja num deslocamento matinal com hora para retornar à aldeia, algo que os Kaiowá também fazem. Mas, enquanto esses se deslocam para vender artesanato nas ruas da cidade, os Terena empregam sua mão de obra no comércio de insumos agrícolas, tentando bater as metas de vendas da John Deere e da New Holland.

Como se sabe, os agrupamentos indígenas são heterogêneos, mas quase todos compartilham de algum modelo hierárquico de funções. Há sempre a figura do chefe ou, melhor dizendo, de um tomador de decisões finais, cujas impressões não podem ser contrariadas. Salvo as tribos matriarcais, minoritárias no centro-oeste brasileiro, o chefe é homem e velho, não necessariamente o mais velho da aldeia, mas raramente jovem. Dos jovens homens se espera disposição física e intelectual para lutar pelos interesses do grupo. Embora não tenha a palavra final, ele manda e é respeitado por todos os que são mais jovens. A força sempre é, portanto, um componente virtuoso na aldeia, mas na hierarquia indígena ela sempre é preterida pela sabedoria – e a sabedoria sempre está associada à experiência. O chefe, contudo, não é um ancião e não governa só por que é sábio. Ele não pode estar doente, fragilizado, incapacitado. Se estiver, perde o posto ou é afastado até se recompor. O respeito que impõe tampouco é apenas espiritual. Embora responsável pela coordenação das preces e rituais, seu saber determina como deve se dar o sustento na aldeia e qual o modelo de comércio aceitável: passivo, aos turistas que visitam a aldeia, ou ativo, em feiras e exposições além dos limites da reserva. Aqui, outra vez, os Terena costumam ser mais abertos ao negócio. Aprenderam técnicas de barganha, promoções e vendas casadas e visam o lucro, excedente à subsistência.

Para além dos limites da reserva, os Guarani-Kaiowás habitam as margens da rodovia MS-156, palco de constantes protestos sempre que se veem ameaçados pelo avanço da monocultura sobre terras ainda não demarcadas. O modelo de moradia nessas áreas destoa dos galhos de taquara e troncos de árvores cobertos por palha ou folhas de palmeira, como são nas tradicionais ocas, e se aproximam das casas de taipa e pau a pique típicas do sertão nordestino. São moradas rudimentares, com cobertura de rede elétrica e água potável, mas carentes de tratamento de esgoto. Não é casual que esses índios, fora da reserva, sejam mais vulneráveis. O quadro se repete em boa medida no resto do país. Aqueles que vivem em reservas demarcadas, amparadas por políticas indigenistas, sobretudo na área da saúde, em geral estão em melhor condição do que os que optam por seguir a própria trajetória num mundo estranho às suas tradições. Essa situação gera um paradoxo porque, se por um lado, a demarcação de terras é um pleito associado à proteção dos índios, por outro lado, existe a queixa de que, uma vez demarcadas as reservas, os índios devem ficar lá confinados.

Ademais, há a cobrança por políticas públicas que são escassas mesmo nas terras demarcadas, como na reserva de Dourados. Quer dizer: se a demarcação traz segurança jurídica, isso não necessariamente implica melhorias sociais.

Dentro da aldeia Jaguapiru há duas escolas: uma municipal, de ensino infantil e fundamental, e outra estadual, de ensino médio. Não há creches, que são a principal demanda dos nativos à Prefeitura. A escola infantil só atende crianças a partir dos quatro anos. Embora voltadas à população indígena, não há impedimento aos cariris – como os brancos são chamados em guarani – de estudarem junto com os nativos. A desde sempre controversa integralização indígena, porém, não alcançou a almejada consolidação. A convivência com os brancos sempre foi e continua sendo conflituosa, fruto de muito ressentimento e preconceito. “A verdade é que no fundo ninguém gosta de índio aqui. Enxergam-nos como um obstáculo ao desenvolvimento. Não reconhecem nosso direito à terra e nos fazem pensar que somos nós os intrusos”, afirma Tonico.

Há casos excepcionais, como o do próprio Tonico, de nativos que se formam na Universidade Federal da Grande Dourados. Fazem mestrado, doutorado e pós-doutorado. Tornaram-se advogados, médicos, enfermeiros, assistentes sociais e antropólogos – formações que contrastam com a preferência geral no município pela área agrônoma, talvez porque já preveem que esses conhecimentos serão mais úteis a sua comunidade no que tange aos litígios territoriais, aos programas de saúde e às pesquisas ancestrais, muitas das quais recomendam novas demarcações.

Alguns diplomados continuam a viver na aldeia. Lutam para manter viva a língua materna, uma luta fadada ao fracasso, e não abrem mão das vestes, das preces e dos rituais, mas inevitavelmente a profissão lhes proporciona um grau a mais de autonomia. Fazem trabalhos fora, dão palestras, viajam para o exterior e às vezes se casam com cariris. Não é o estudo que incomoda os mais velhos, mas a consequência dele. Aquela senhora tentou se matar porque não aceitou a independência completa do filho. Sentiu-se responsável pelas suas decisões e se culpou por elas. A reação à vasectomia – o suicídio malogrado – ao nosso ver banal, para ela é uma penitência por ter falhado como mãe, porque seu filho não a consultou. Tudo o que faz recai sobre a sua consciência. Ela espera que os filhos busquem seus conselhos por toda vida e jamais proceda com o que desaprova.

Um caso foi o que me chamou mais atenção. Conheci Kauane isolada na aldeia. Menina introvertida, passa o dia deitada na rede, sem falar com ninguém. Tentou se matar três vezes no último ano. A mãe a oferecia por cachaça, mas nenhum comprador a quis grávida. O pai é alcoólatra e não quer sua guarda. O pai do seu filho não assumirá a criança e a ameaçou caso busque a paternidade na justiça. Tonico intermediou sua adoção junto a uma família Bororo, mas ela foi rejeitada dias depois por desconfiança da matriarca, receosa de que a menina fosse roubar-lhe o marido, nesse lugar onde os maridos valem mais que as filhas. Semana passada, conta Tonico, Kauane vagava pelas ruas de Dourados pedindo esmola. Ele a convenceu a retornar à aldeia, sob a sua supervisão.

Seu sonho era estudar para um dia conseguir um trabalho que a tire desse lugar. “Era o que eu mais queria na vida”, diz, olhando para baixo. Pergunto o que a impede, a escola está na frente da aldeia, é só atravessar a rua de terra. A assinatura dos pais. Eles se negam a matriculá-la. “Já implorei de joelhos. Eles ignoram”. O Conselho Tutelar acionou o Ministério Público, que denunciou os pais por negligência e abandono de menor. Pai e mãe não parecem se importar. Recusam a filha. É Tonico quem liga para conhecidos pedindo que a acolham por alguns dias, para que ela não vire mendiga. A situação não comove os familiares que veem com receio as intromissões judiciárias na aldeia.

“O que essa menina precisa” – conta Tonico – “mais do que tudo é de carinho. Nunca foi abraçada. Nunca recebeu um afeto. Só conheceu ódio e dor desde que nasceu. E não tem nem dezessete anos. Que será do filho? Vida desgraçada”.

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