Por quem os sinos dobram?

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Tenho notado o surgimento de grupos de esquerda nas redes sociais adeptos da ideologia do samba de uma nota só, de Tom Jobim. Só falam da hedionda invasão da Ucrânia pela Rússia, repetem ininterruptamente a denúncia sobre a dor dos mortos, o sofrimento dos migrantes, as grávidas bombardeadas, as crianças estilhaçadas, as famílias e cidades destruídas. É a versão da grande mídia corporativa ocidental.

Por Manoel Olavo Teixeira, compartilhado de Construir Resistência




Qualquer observação que fuja deste enredo é imediatamente entendida como uma execrável tentativa de “justificar os assassinatos de Putin”. Qualquer esforço para entender o processo da guerra atual, seja do ponto de vista histórico ou geopolítico, é tomado como uma defesa do ato de matar um outro ser humano, por um degenerado que se alegra com a morte de outros seres humanos. O diálogo tornou-se impossível,  como é comum acontecer nas redes sociais.

Há nesta postura muito de desinformação e de recusa à reflexão, mesmo diante de um evento trágico e complexo da história humana. A reflexão e a informação mais isenta, no mínimo, nos torna mais independentes para chegar às nossas próprias conclusões.

Mas há um outro ponto nisso tudo, de natureza cognitiva. Esta parcela de pessoas não consegue compreender que discutir as razões e determinantes geopolíticos e históricos de um fato não significa defender ou justificar aquele fato. Significa apenas pensar para além do comodismo reducionista de posições simplistas ou maniqueístas. Refletir e tentar compreender é diferente de justificar. Parece óbvio, mas não é para muitas pessoas.

Reconheço que é preciso ser tolerante com ingenuidade, desinformação e incapacidade de distinguir procedimentos cognitivos. Mas há algo bem mais desagradável por trás desta atitude. Na verdade,  existe uma gigantesca arrogância.

Como se essas pessoas se achassem as únicas capazes de sofrer e ter empatia legítima com a dor e a morte de outros seres humanos. Como se qualquer um que saia da cadência do samba de uma nota só não passasse de um monstro homicida que goza e se regozija com a morte dos ucranianos.

E isto não é verdade. Outras pessoas, inclusive aquelas que tem a petulância de citar o papel do Ocidente na eclosão desta guerra, sofrem e se indignam com o morticínio na Europa. Há muito aprendemos, com John Donne, no século XVII, a não perguntar por quem os sinos dobram. Eles dobram por todos nós. Inclusive pelos mortos da Ucrânia e por aqueles que não precisam ter a ilusão narcísica de serem os únicos capazes de sentir comoção verdadeira com o sofrimento de outros seres humanos.

Com essa arrogância,  disfarçada de bom mocismo, lamento.  Não dá pra ser tolerante.

Médico psiquiatra. Professor e Pesquisador do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e do INI- FIOCRUZ. Co-autor do livro “Contos de resistência em tempos de pandemia ” (2021).

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