A criminalização do jornalismo por Jair Bolsonaro e o desmonte das instituições nos levam ao ponto do insustentável. Entre os povos indígenas que o presidente menospreza, a esperança para uma vida em que o outro é potência, e não ameaça
Por João Peres, Marcos Hermanson e Tatiana Merlino, compartilhado de O Joio
Começamos a fazer as malas com roupas, comida e vinte quilos de angústia em meio às primeiras notícias sobre o desaparecimento de Dom Phillips e Bruno Pereira. Um aperto na garganta, um respirar profundo, um desvio de foco, o peso da morte anunciada: nós, jornalistas, sabíamos que alguma hora aconteceria, e discutíamos o que fazer enquanto de concreto conseguíamos fazer muito pouco.
A ansiedade de uma viagem perigosa a terras indígenas de Mato Grosso ganha contornos mórbidos. Entre nós três, ficamos sem palavras para tocar no assunto: e se acontecer conosco? Não falamos abertamente, mas contratamos um seguro de vida e discutimos protocolos de segurança.
Em outros tempos, avisaríamos a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal – agora, salvo por teimosia de alguns servidores, as instituições não estão funcionando. Em outros tempos, pisaríamos com cuidado no terreno da investigação, mas um fim trágico pareceria algo distante – agora, quando a brutalidade se espalha e transborda, qualquer pergunta para qualquer pessoa em qualquer situação pode ser motivo suficiente.
E, no entanto, viajamos. Seguimos. Seguimos porque é o que sabemos fazer. Porque é o que corresponde fazer: não desistir. Seguimos. Com nós na garganta.
A criminalização do jornalismo por Jair Bolsonaro empodera o absurdo, naturaliza o silenciamento, desnaturaliza a discordância e a diversidade. Ele não precisa apertar o gatilho para ter sangue nas mãos.
Viajar a um reduto bolsonarista simboliza um campo minado no qual passos em falso custam caro. E não deveriam. Eles juram que isso é democracia: nós respondemos que é todo o contrário. Eles pregam o direito de impor um mundo monolítico no qual o outro é ameaça, e o aniquilamento é a regra. Nós nos apegamos à ideia de que o outro é potência, e respeito é a regra.
Alguns dias depois do início da viagem, enquanto nos preparamos para ir a uma terra indígena paquerada pelo agronegócio, chega a notícia de que encontraram os corpos. Calamos, choramos, sentimos o peso da angústia aumentar, tornar-se quase insustentável. Faltam palavras, porque de fato não há o que dizer diante da brutalidade.
Tentamos, em vão, manter a concentração. Mas seguimos, com os pensamentos distantes e o corpo pesado. Por que seguimos? Não sabemos. Simplesmente seguimos. Talvez para expressar em gestos o que nos falta em verbos para homenagear Dom e Bruno. Talvez para expressar, do alto da nossa impotência, que nada é em vão. Talvez para que a brutalidade não tenha tanta certeza de que venceu. Seguimos porque é impossível acomodar-se nesse vórtex de sangue, suor e lágrimas.
“Boa tarde”, dizem as crianças indígenas, encantadas com a máquina fotográfica e o gravador. “Boa tarde”, elas repetem mil vezes, e nós respondemos outras mil, com a sensação de que todos poderiam passar muitos dias nessa troca divertida e ingênua entre línguas, culturas e existências totalmente diferentes – diversas.
É justamente aqui, onde estamos, uma das áreas-chave para que Bolsonaro consiga fazer com que os povos indígenas sejam, “cada vez mais, seres humanos como nós” – de que humanidade ele estará falando? Dessa que corre desesperadamente em direção ao dinheiro? Dessa que sufoca a empatia em nome de uma identidade forjada na crueldade?
Naquele dia tão triste, uma tarde sublime se apresenta. Uma grande aldeia circular nos dá o alento de uma vida que merece ser vivida. As casas de palha grossa, imponentes, dispostas de forma simétrica a formar uma grande praça central na qual muitos fatos se desenrolam em simultâneo. Os anciões que conversam sob a brisa fresca da sombra das enormes árvores. Os jovens jogando futebol com dois goleiros e vôlei com duas bolas. Sem um número “certo” de jogadores. Sem importar quem vença. Sem se preocupar com quem é o melhor.
Eles se divertem com uma tarde qualquer. Nós nos divertimos com uma tarde em suspenso na qual a brutalidade não penetra. E esperançamos com o horizonte infinito do Cerrado nos recordando de que sempre é tempo para um outro mundo possível. Com duas bolas no jogo de vôlei. Com o “boa tarde” transformado em gargalhada. Com Dom. Com Bruno. E sem Bolsonaro. Seguimos. Com o desejo de que o Brasil abandone a aventura nada recomendável à qual se lançou em 2018.