Referências do Carnaval e da cultura popular avançam em temas identitários e apostam na diversidade, mas patinam na precarização dos trabalhadores e ignoram a sustentabilidade
Por Aydano André Motta , compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Componentes da Portela reunidos sob o Cristo Redentor: centenário de luta e arte. Foto Guilherme Silva/divulgação
Contra o racismo de todo um país, as escolas de samba do Rio completam um século de existência (sobrevivência, na verdade), pela mais importante delas, a Portela. Em 11 de abril de 1923, nascia a azul e branco ainda com o nome de Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz; depois se chamaria Vai como Pode até ganhar seu nome definitivo e, com ele, se consolidar como a mais importante grife da cultura popular brasileira – além de maior campeã do Carnaval carioca.
O centenário chega, aliás, com boas e más notícias para as escolas de samba. O #Colabora listou cinco de cada lado, no eterno enredo do copo meio cheio/meio vazio. Vem com a gente nesse ritmo – e viva a Majestade do Samba, da águia altaneira de Madureira e Oswaldo Cruz!
As boas do paticumbum
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O Brasil que passa nos enredos. Desde 2017 – e mais intensamente a partir de 2020 -, as escolas escolhem temas críticos, conectados à realidade das periferias e do povo preto. O ganho de consciência está diretamente ligado a uma nova geração de carnavalescos, muitos deles negros, numa função quase cativa dos brancos na história da festa. A celebração de personagens e episódios invisibilizados na careta história oficial e a insurreição contra preconceitos variados compõem as novas narrativas que passam na Sapucaí. Veio para ficar.
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Aqui é comunidade! A começar pela centenária Portela, as escolas valorizam crescentemente seus territórios, seja na aposta na vida comunitária que dura o ano todo, ou na prioridade dada aos seus nas alas e alegorias. Praticamente desapareceram alas comerciais, daquelas que o folião passa alienado pela avenida; hoje, quase todos os componentes comungam da identidade dos grêmios. Ensaios de quadra e de rua, projetos sociais/educacionais e eventos culturais – como a Fliportela, que terá sua edição de 2023 a partir do dia 29 – completam o virtuoso cotidiano dos sambistas.
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Minorias empoderadas. Historicamente, as escolas carregam a diversidade nas suas entranhas, com trabalhadores LGBTQIA+ e, sobretudo, muitos negros. Não existem restrições nem preferências prévias, como em outros setores da economia. Na sua lógica de mutirão, o Carnaval acolhe todo mundo em quadras e barracões.
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Fábricas de arte. A cada ano, as escolas produzem dezenas de sambas, constróem alegorias e fantasias espetaculares, revelam dançarinos, designers, ritmistas, cantores, mestres-salas, porta-bandeiras, coreógrafos. O aparecimento de artistas se dá em ritmo industrial – sempre respeitando a identidade de cada grêmio, formadora de um caldeirão de diversidade único sobre a Terra.
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Economia de bamba. O Carnaval não para de crescer em importância nas receitas do Rio. A festa de 2023 despejou R$ 25,7 milhões nos cofres da prefeitura carioca, somente em ISS, o imposto municipal sobre serviços. Foi a segunda maior arrecadação da série histórica, atrás apenas da Copa de 2014 (que durou um mês), e um crescimento de 30,8% na comparação com a edição de 2020, a última antes da pandemia.
Onde o samba atravessa
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Faltam jovens e idosos. O público das escolas de samba precisa rejuvenescer urgentemente. Poucos jovens se interessam por ensaios, feijoadas e desfiles – nos eventos do paticumbum, visualiza-se um mar de cabelos grisalhos aproveitando a overdose de alegria. Mesmo a turma nova das comunidades populares prefere outros ritmos, como o funk e o pagode. De outro lado, as grifes da folia sofrem com a ausência de idosos, que são cooptados pelas igrejas neopentecostais, presentes nos territórios. Assim, todo ano é uma dificuldade para preencher alas de baianas e da Velha Guarda.
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Olha a crise (climática)! O enredo da sustentabilidade passa muito longe das escolas de samba, que ignoram boas práticas ambientais. A produção do Carnaval mantém-se ecologicamente incorreta, com uso excessivo de plásticos, penas de animais e combustíveis fósseis nas alegorias. São raros os enredos que tratam do tema tão urgente.
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No ritmo da precarização. Trabalhar no Carnaval é para os fortes, que enfrentam condições terríveis, de estruturas criminosamente precarizadas. Acordos totalmente informais, temporários, sem quaisquer garantias, muitas vezes terminam em calote. A estrutura dos barracões e funções como a de motorista dos carros alegóricos impõem riscos até de vida. Acidentes e incêndios ocorrem com frequência inquietante – e os sambistas não aprendem lições básicas, como prevenção e respeito às leis trabalhistas. O panorama piora nas escolas mais pobres, das divisões inferiores, vítimas dramáticas da desigualdade mais brasileira.
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O crime logo ali. Em pleno 2023, na era do compliance, banqueiros do jogo do bicho ainda comandam muitas escolas e ostentam influência decisiva na Liga Independente das Escolas de Samba, arranhando a imagem da festa. Muitos investidores guardam distância segura da batucada para não interagir com personagens tão controversos. Agora, surge nova ameaça: a milícia, que começa a entrar na festa, pelas divisões inferiores (e menos monitoradas pela mídia).
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Andar de cima sem diversidade. Nos espaços de poder, o Carnaval é uma tediosa reunião de homens brancos, com exceções que servem apenas para confirmar a regra. A diretoria da Liesa tem apenas dois negros e nenhuma mulher; nas 12 escolas do Grupo Especial, são presidentes brancos, três pretos e somente duas presidentas – Cátia Drummond, da campeã Imperatriz Leopoldinense, e Guanayra Firmino, da Mangueira, a única negra. Falta representatividade, tão valorizada pelo mercado, nas grifes da folia.