Porto Alegre mantém projeto para desapropriar quilombo em meio à calamidade

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O Quilombo dos Machado fica em uma das áreas mais atingidas pelas inundações na capital gaúcha. Governo municipal quer desocupar território quilombola para ampliar ruas que ligam ao aeroporto na região, que atrai grandes empreendimentos

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Foto: Reprodução/Instagram/@quilombodosmachado

Por João Victor Oliveira, no Alma Preta

Apesar da situação de calamidade pública que se encontra Porto Alegre devido às inundações, a prefeitura mantém um projeto que visa retirar a população do Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, para a ampliação de ruas.

Desde o início das inundações provocadas pelas fortes chuvas, o Quilombo dos Machado atua no suporte às vítimas das enchentes com distribuição de colchões, marmitas e acolhimento de quem perdeu tudo o que tinha. O local já havia sofrido com enchentes em anos anteriores, porém nunca na mesma magnitude deste ano.

O território quilombola sofre constantemente com a tentativa de desapropriação através de um projeto da gestão municipal para ampliar a pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho e algumas ruas da Zona Norte da capital gaúcha, como a Avenida Rocco Aloise, onde se encontra o quilombo.

O prefeito Sebastião Melo (MDB), ao ser questionado sobre o que fica de aprendizado após a catástrofe, afirmou que as pessoas que tiveram suas casas inundadas nunca deveriam morar onde moram. O advogado Onir Araújo, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, explica que o projeto de desapropriação da região existe há pelo menos dez anos.

“Existe um projeto desde a época das obras da Copa do  Mundo de 2014, que implicou na ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho, das ruas Dona Alzira, Severo Dullius e na liberação do empreendimento da Havan. O projeto reduziu o espaço de amortecimento natural da Área de Proteção Ambiental (APA) que é de expansão do lago. É óbvio que não tinha para onde se expandir e quem foi duramente impactado foi a população mais pobre da região. É uma lógica de racismo utilizada na catástrofe para potencializar este projeto. Não existe nenhuma medida em relação ao Carrefour (hipermercado localizado ao lado do quilombo), que não contribui em nada com a população do Sarandi”, afirma.

Reprodução/Instagram/@quilombodosmachado

Em agosto de 2020, a Prefeitura de Porto Alegre efetuou mudanças na tramitação paralela de licenças ambientais, instituída em janeiro daquele ano pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams), o que favoreceu a aceleração da construção de uma unidade da loja Havan na Zona Norte, juntamente ao Centro Comercial Assis Brasil. Antes era preciso aguardar a aprovação do projeto de arquitetura para dar início ao licenciamento ambiental, depois da medida ambas as liberações podem ser feitas paralelamente.

O parecer técnico realizado pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre o Quilombo dos Machado divulgado em fevereiro de 2024 aponta violações de direitos humanos. Segundo o documento, o território é frequentemente ameaçado pelas atividades de compra, venda e desenvolvimento de propriedades por parte do setor imobiliário.

A população sofre constantemente com a ameaça de reintegração de posse e com o sufocamento de grandes empreendimentos na área como o grupo Carrefour/Atacadão, que pressionam o poder público a negligenciar providências para melhorar a infraestrutura da região para os moradores do Quilombo dos Machado.

Mais de 7 mil pessoas perderam tudo o que tinham no Quilombo dos Machado

Segundo um mapeamento realizado pela Prefeitura de Porto Alegre, o bairro Sarandi teve cerca de 26 mil pessoas afetadas pelas enchentes, o local com mais moradores atingidos pelas inundações na cidade. A região é a mais populosa da Zona Norte e tem a maior concentração de moradores negros da capital gaúcha. Um dos fatores agravantes do alagamento no bairro foi o extravasamento do dique próximo à Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), dois rompimentos na estrutura fizeram com que a água chegasse primeiramente na Vila Brasília e consequentemente ao Sarandi por completo.

O quilombo Areal da Baronesa, onde residem 84 famílias, é conhecido como o berço do samba na cidade de Porto Alegre e foi tomado por lama com o desligamento da Estação de Bombeamento Pluvial (EBAP) 16, responsável pelo bairro Menino Deus.

Além das perdas de bens materiais e de documentos importantes, o advogado Onir Araújo cita perdas simbólicas para a população negra porto-alegrense.  É o caso de pelo menos seis terreiros presentes na Vila Respeito, que contribuíram no processo de organização do bairro e foram devastados pelas enchentes. O líder da comunidade quilombola Jamaica Machado estima que ao menos 7 mil pessoas tenham perdido tudo na região do Quilombo dos Machado. Pelo menos 40% do bairro Sarandi foi destruído. “Estamos no epicentro da desgraça”, pontua.

Reprodução/Instagram/@quilombodosmachado

Colapso no sistema de contenção das cheias

Para o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), o poder público deve investir em políticas para proteger as comunidades quilombolas diante das mudanças climáticas para que esses territórios tenham condições de se adaptar e de resistir a eventos climáticos extremos. O parlamentar avalia que a falta de manutenção no sistema de contenção das cheias na Zona Norte da cidade foi um dos pontos mais prejudiciais.

No dia 20 de maio, Gomes usou as redes sociais para denunciar que a Prefeitura  de Porto Alegre foi alertada sobre os riscos de inundações no centro da cidade e nos bairros Sarandi, Menino Deus e Cidade Baixa. O parlamentar apresentou documentos do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) solicitando, em novembro de 2023, reparos urgentes nas casas de bombas após as chuvas alagarem Porto Alegre em uma proporção menor do que a atual. Os documentos foram entregues ao Ministério Público.

“Vamos exigir uma investigação rigorosa e trabalhar em uma agenda para a responsabilização dos gestores e governantes que negligenciaram a fiscalização adequada. Eu acredito que nós temos já evidências de que a prefeitura de Sebastião Melo foi negligente, temos problemas de outras gestões também que precisam ser devidamente investigados”, pontua o deputado estadual, em entrevista à Alma Preta.

Gomes acrescenta que as chuvas que atingem a capital gaúcha desde o ano passado foram uma espécie de teste dos sistemas de contenção das cheias. “As chuvas que aconteceram no passado  já elevaram a cota de inundação do Guaíba, após isso foi alertado sobre vários problemas que deveriam ter sido resolvidos e não foram. Da parte da prefeitura do Sebastião Melo existiu um total descaso, isso precisa ser investigado com máximo rigor”.

Reconstrução do Rio Grande do Sul

Em conjunto com outros parlamentares e apoiado por ambientalistas e técnicos da área urbana e ambiental, Matheus Gomes vai propor a revogação de um conjunto de medidas do governador Eduardo Leite (PSDB) que flexibilizaram as leis ambientais no Rio Grande do Sul. “Este vai ser o nosso primeiro grande debate aqui na Assembleia Legislativa para começar a pensar na reconstrução”.

Desde a semana do dia 20 de maio, quando a chuva deu uma leve trégua e a água baixou em algumas regiões da cidade, Porto Alegre vive um processo de limpeza. Entretanto, a população periférica da capital ainda luta para que seja vista pelo poder público, mesmo com a água baixando em algumas partes que foram alagadas na cidades, o bairro Humaitá seguiu submerso durante 25 dias.

A situação só foi ter atenção da Prefeitura de Porto Alegre após a comunidade se organizar coletivamente, bloqueando faixas da BR-290, um dos únicos acessos à cidade neste momento. Após o protesto, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) instalou uma bomba de drenagem emprestada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o que auxiliou para o recuo de pelo menos 35 centímetros das águas na região, segundo moradores e integrantes do exército presentes na região.

A reportagem procurou a Prefeitura de Porto Alegre e questionou sobre o projeto de retirada do Quilombo dos Machado mesmo diante da situação de calamidade pública. Até a publicação deste texto, não houve resposta. O espaço segue aberto.

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