Especialistas criticam diretrizes para o ensino de história, voltadas aos professores, que não dão conta do tamanho da exploração e da violência do tema
Por Igor Soares, compartilhado de Projeto Colabora
na foto: Manifestante protesta contra o racismo no centro de Lisboa. Debate sobre escravidão nas escolas do país deixa muito a desejar. Foto Lucas Neves/NurPhoto via AFP
Portugal coleciona episódios de racismo e xenofobia. Uma sociedade atrasada no debate de questões sociais e, perceptivelmente, raciais. O Brasil, que foi colonizado pelo país europeu, sofre, até hoje, com as marcas deixadas pelos portugueses. Por lá, é comum conversar com idosos que falam com orgulho sobre o processo de colonização, mas não tocam ou não demonstram algum conhecimento real sobre violências históricas, como a escravidão. O que a sociedade tem feito para tratar do assunto? Como as escolas lusitanas abordam a questão nas salas de aula?
De acordo com os manuais de história do 5º, 6º, 8º e 9º anos, a escravidão não é abordada profundamente, deixando impressões equivocadas sobre este processo, muitas vezes, trazidos e tratados como conquista de território com boas ações. Para os portugueses, a colonização do Brasil segue sendo uma grande vitória.
Danilo Cardoso é professor de história e coordenador do Grupo EducAR, um coletivo antirracista. Ele deixou as salas de aula do Brasil em 2014 e se mudou para Portugal, onde não trabalhou como professor, inicialmente, mas passou a estudar mais profundamente como a escravidão é tratada no país, buscando continuar sua prática docente. Ele abre os manuais que tem em casa e rechaça o conteúdo oferecido aos alunos. “No segundo ciclo, tem apenas duas páginas sobre a questão, com dois parágrafos falando sobre o mercado de escravizados. Todo o eixo é centrado na exaltação do império de Portugal. Há uma parte dedicada ao Brasil, falando sobre a escravização, mas não passa de três parágrafos. Não há nenhum tipo de ênfase na crueldade, um reconhecimento do ato anti-humanitário. A linguagem dos manuais difere muito pouco”.
Em uma parte do documento que traz diretrizes aos professores de história, elaborado pela Direção-Geral de Educação, vinculada ao Ministério da Educação, pede-se aos docentes para “caracterizar os principais sistemas de exploração do Império português nas ilhas atlânticas, costa ocidental africana, Brasil e Império português do Oriente”, mas não cita quais sistemas de exploração são esses.
Em outra parte das orientações, destaca-se “avaliar as consequências internas e externas do afluxo do ouro do Brasil a Portugal”. O professor afirma que não é um assunto que vai chegar à escravatura e é discutido superficialmente. “É muito delicado porque isso pode aguçar um medo e um silêncio que já existem…como isso tudo se torna obstáculo para discutir a escravatura. Um dos ambientes em que se discute a escravidão é na universidade, mas não saem dos muros da universidade”.
Outra diretriz adotada é “identificar/aplicar os conceitos: navegação astronómica; colonização; capitão-donatário; império colonial; mare clausum; monopólio comercial; feitoria; tráfico de escravos; aculturação/ encontro de culturas; missionação; globalização”. O professor frisa que os temas são tratados de maneira naturalizada. “Você não tem espaço para refletir sobre esse impacto da escravatura para a África. Há essa negação de existência continental antes da chegada dos europeus. No Museu de Lagos, em Portugal, acharam corpos de pessoas e se aproveitaram para construir um museu tenebroso, rota da escravatura”.
Para o professor, é preciso repensar a narrativa urgentemente. “Se tivéssemos um manual mais avançado, teríamos um conhecimento maior. Portugal vem sofrendo pressão da União Europeia, desde 2016, com cobranças para múltiplas narrativas. Não é doloroso porque foi cruel, mas porque se perderam as colônias. Poucos alunos têm acesso à disciplina História, Culturas e Democracia”.
“Só a partir de 2020 que a reflexão antirracista passa a ser sugerida, por meio de um documento simbólico e superficial, emitido pelo Conselho Nacional de Educação, depois de um ano violento, com assassinatos, espancamento e pichações racistas e xenófobas”. Cardoso montou um coletivo para tratar do antirracismo. Ele chegou ao país como turista, trabalhou em restaurante e foi a partir do dia a dia no país que percebeu as questões sociais e raciais. “Crio um ciclo de encontros de educadores antirracistas para reunir e conhecer docentes. O surpreendente foi que a gente encontrou professores, artistas, profissionais de várias áreas e começamos a pensar na possibilidade de criar uma plataforma para atuar em diferentes frentes”.
O Grupo EducAR recebeu prêmios pela iniciativa de combate ao racismo. O coletivo é formado por diversos membros, que inclui brasileiros, pessoas dos Palops (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), há pessoas africanas e negras espalhadas pela Europa. “A gente surge para pensar e fazer essa educação antirracista. Somos um coletivo informal, estamos articulados. Tem formação para pessoas brancas, tem catálogo de obras de arte. Conseguimos discutir o tema de diferentes formas por meio da arte-educação, que são nossas armas”, completa.
O cenário do racismo
Raquel Machaqueiro é antropóloga e pesquisadora portuguesa, vinculada à Universidade George Washington, dos Estados Unidos. Ela estuda o racismo em Portugal. A especialista salienta que há uma tentativa do governo de melhorar a abordagem sobre o tema. “Em termos de programas escolares, não há nada oficializado, não há um programa para os alunos aprenderem. Tem havido um esforço melhor do governo sobre a questão. Em termos institucionais, não muda muito. Não é uma coisa que ainda há políticas públicas concretas para tratar o assunto. Não há o reconhecimento institucional do racismo estrutural. O colonialismo ainda está muito vivo em Portugal.”
Segundo ela, ainda que minimamente, agora há um reconhecimento da violência que estava implícita na escravidão, mas com ressalvas. “O problema nos programas de história é que continuam usando uma linguagem desonesta sobre o processo e a inversão da narrativa que falta fazer”, critica.
Brasileiros e outros estrangeiros têm de lidar com o racismo e a xenofobia em Portugal, que ainda não elaborou, efetivamente, planos de combate a essas formas de preconceito. Para Machaqueiro, falta “educação e políticas públicas”. “A educação precisa falar do problema do racismo; a escola precisa combater nos programas desde o início; e políticas públicas que criminalizem o racismo. O judiciário precisa passar por formações sobre racismo. As várias classes precisam passar por isso, como os médicos, entre outras.”
A antropóloga critica o fato de Portugal não realizar autoidentificação dos habitantes. “O censo em Portugal não faz autoidentificação. Há um déficit de dados demográficos em Portugal. Sem dados, não é possível criar políticas públicas.”
O fluxo migratório de brasileiros a caminho de Portugal se deve a diversos fatores, como uma busca por segurança e, pelo que muitos deles relatam, uma qualidade de vida que não se tem no Brasil. “A imigração por si só é positiva, em razão da diversidade. Tem de haver políticas públicas para cuidar das pessoas. Tem de haver formas de integrar as pessoas. Há dois extremos: a recusa total do brasileiro e a necessidade de mão de obra estrangeira”, aponta.
O cenário de discriminação em Portugal é preocupante e os casos são inúmeros. Na contramão, brasileiros e outros residentes organizam frequentemente manifestações contra o racismo e a xenofobia. “São importantíssimas, fazem um trabalho de conscientização sobre o racismo. Tem um papel de mobilização das pessoas. Há uma força que mostra à sociedade a oposição ao que se pensa”, pontua a antropóloga. “Há uma legislação que criminaliza o racismo em Portugal. No entanto, deveria criar uma lei mais incisiva”, complementa.
Perguntada se há alguma iniciativa pública antirracista, a antropóloga é categórica e afirma não haver nenhuma ação nesse sentido: “Não há. Eles não assumem que há o problema do racismo. O combate ao racismo está a ser feito por via de iniciativas individuais, por professores de escolas, de organizações. A nível institucional, não há nada que seja prático.”
Recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, admitiu a violência do período de escravidão e pediu desculpas pelas ações do país, porém, é preciso ir além. “Em relação a pedir desculpas, é um primeiro passo, mas é uma ideia muito individual. Não é uma coisa pública, não foi assumido largamente pela classe política em Portugal. O presidente pediu desculpas pela escravidão, mas não foi bem aceito pelos políticos de outros partidos. Falta fazer as compensações na reestruturação do currículo escolar, na formação, na capacitação, na cooperação”, finaliza