Imigrantes, que aprendem nossa língua para viver no Brasil, enxergam cordialidade nos brasileiros
Por André Giusti, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Alunos de turma do curso Português como Língua de Acolhimento: imigrantes enxergam cordialidade nos brasileiros (Foto: Divulgação)
De sorriso largo, pele morena e cabelos escuros com fios tingidos de louro, a administradora Nourhan Hassam, de 30 anos, passa perfeitamente por uma brasileira típica, nascida da miscigenação, marco de nossa identidade. Mas quando a moça, simpática e falante, começa a conversar, fica claro que ela está aprendendo a falar português. Nourham é egípcia e está no Brasil há cinco anos, quando chegou ao país com o marido só sabendo falar três palavras na língua de Camões: pão, arroz e feijão.
Nourham está entre os cerca de cem alunos do curso Português como Língua de Acolhimento, que há mais de três anos ensina nosso idioma a imigrantes que chegam de vários países do mundo com um objetivo maior: terem uma vida melhor no Brasil. E essa vida melhor tem início quando eles começam a aprender português. “Eu vou ficar sem amigos? Sem vida?”, e desse modo, a egípcia explica que o curso permite que ela parta para o crescimento que tanto deseja, em que se comunicar é fundamental.
Português como Língua de Acolhimento é um projeto de extensão da Universidade de Brasília (UnB) e que foi adotado também pela Secretaria de Educação do Distrito Federal numa parceria entre as duas instituições. Completadas as sessenta horas-aulas, o aluno recebe um certificado de conclusão, que é um dos requisitos exigidos pela Polícia Federal para quem quiser se naturalizar brasileiro. O curso prepara o aluno para que ele forme vínculos quiçá definitivos com o Brasil. “A gente viu que eles (os alunos) têm uma necessidade que vai além de um emprego imediato. Há alunos que querem crescer no Brasil, que querem, por exemplo, entrar na universidade. Alunos que querem conseguir registro na OAB, validar diplomas. Então, para esses, aprender português significa bem mais do que resolver demandas que implicam a sobrevivência no país”, explica Fabíola Ribeiro, uma das professoras que, juntamente com outros sete profissionais de educação, desenvolve o projeto no Centro Interescolar de Línguas do Guará, cidade a 15 minutos de Brasília.
As pessoas aqui dão oportunidade para os estrangeiros falarem, não é como em outros países
Olanyi AkilwumiImigrante nigeriano
A perspectiva de construir um futuro no Brasil a ponto de não pensar mais em voltar para o país de origem é real para a peruana Ada Noemi, de 36 anos. E ter aprendido português foi decisivo para essa possibilidade. Quando conseguiu dominar o idioma, Ada foi promovida a gerente em um dos restaurantes mais badalados de Brasília, na filial do Centro Cultural Banco do Brasil da capital do país. Ada tem a certeza de que assim poderá crescer ainda mais profissionalmente, condição que não teria caso houvesse ficado no Peru. “No Brasil há muito mais facilidade para se estudar do que no Peru. Depois do ensino fundamental, é muito difícil a pessoa estudar no Peru. No Brasil há instrumentos que permitem a pessoa estudar, como bolsas, cursos”, argumenta.
“Um curso de graça para que os imigrantes aprendam a falar a língua local? Eu só vi no Brasil”, garante o nigeriano Olanyi Akilwumi, de 40 anos, há oito no país, e que já viajou boa parte do mundo. As chances que o Brasil oferece de as pessoas estudarem acabou sendo oportunidade de empreendimento (e vínculo consolidado com o Brasil) para Olanyi. Ele abriu um curso de línguas no próprio Guará, onde oferece aulas de inglês e francês, entre outros idiomas. Simpático, alegre e comunicativo, conversa em português sem qualquer constrangimento, mesmo admitindo que às vezes mistura os pronomes masculinos e femininos, particularidade que o inglês, no qual foi alfabetizado, não possui.
O curso dura três anos, não há reprovação e o ensino é voltado par as necessidades básicas e direitos do imigrante. Outro diferencial é o atendimento individualizado uma vez por semana, especialmente aos alunos de países cuja língua não possui tronco no latim ou no inglês, como o árabe. “A gramática não é trabalhada de forma solta, e sim a partir da narrativa, que é como se constrói o pensamento”, explica a professora Fabíola, destacando que sempre os temas se relacionam com as necessidades levadas pelos alunos e com a identidade deles, com foco nos direitos humanos. Essa abordagem unida ao atendimento individualizado acaba levando, segundo Fabíola, a que muitos relatem casos traumáticos envolvendo violência e tortura na infância, “histórias de gente que corria risco de vida onde nasceu”, destaca Fabíola, deixando claro que esses casos são mantidos em absoluto sigilo pelo professor que deles toma conhecimento.
De fato, o Brasil tem o que dizer ao resto do mundo em termos de diversidade social, racial. Apesar de todo o racismo estrutural, não há uma guerra; há formas de convivência e, sobretudo, a cultura é feita de misturas
Mariza VelosoProfessora da Faculdade de Sociologia da UnB
No aprendizado do português, de acordo com Fabíola, uma das principais dificuldades para os alunos imigrantes de origem árabe é o uso das preposições e do verbo ser, o que segundo ela não é problema para os que foram alfabetizados em francês ou espanhol. A egípcia Nourhan explica que “A regra muda bastante. Às vezes tem ‘em, para, a’, essas coisas, que se você não puser no lugar certo, ninguém vai entender nada. Você tem que saber onde botar as coisas, a regra. Se você fora de regra, você não vai conseguir falar”, e ela pula na última frase o verbo estar. Percebe-se que realmente Nourhan se atrapalha na hora de usar “na, no e em” quando conta que chegou a morar quatro meses na Curitiba. “Você tem que escutar muito, tem que ler muito”, resume.
Aliás, a leitura, cuja importância qualquer aluno brasileiro escuta falar desde cedo, também tem sido um precioso instrumento de aprendizado para o venezuelano Julio Javier Reyes, no Brasil desde 2019. Julio devora os livros do historiador Eduardo Bueno. “Me sinto parte do Brasil porque tenho interesse em conhecer o passado de vocês. E é muito grato conhecer coisas que às vezes os próprios brasileiros não conhecem. Eles falam: Nossa, mas você parece mais brasileiro do que nós”, e Julio conta rindo a reação das pessoas quando ele fala sobre fatos da história do Brasil, esse hiato nebuloso no conhecimento geral do brasileiro médio. Ada, a peruana gerente de restaurante, levou cerca de um ano e meio para se sentir segura falando português. “Até que não foi muito difícil, porque os brasileiros são muito compreensivos, falavam devagar comigo, me ensinaram e explicaram como falar certas coisas que eu ´precisava no dia a dia”, recorda.
O brasileiro gentil?
Há um traço comum nos depoimentos de Ada e dos outros alunos do curso: a generosidade e a paciência do brasileiro com quem vem de fora, algo que até parece perdido em tempos de discursos de ódio e preconceito nas redes sociais e até mesmo em acontecimentos diários. “Sim, pessoas aqui muito legais”, confirma o nigeriano Olanyi, sem empregar o verbo ser. “As pessoas aqui dão oportunidade para os estrangeiros falarem, não é como em outros países”, e Olanyi nos compara com os franceses: “Eles não têm paciência pra gringo”, resume, garantindo que no Brasil nunca foi discriminado por ser estrangeiro e nem por ser negro.
O venezuelano Julio saiu de seu país praticamente fugido da situação econômica e política. Seu destino era o Uruguai, e o Brasil, apenas uma passagem. Aqui, tudo mudou. “O acolhimento que eu tive aqui foi tão maravilhoso que eu decidi ficar”. Motorista de uma empresa de cosméticos, Julio viaja sempre para São Paulo, Santa Catarina, Minas, Bahia e Goiás. “As pessoas sempre tiveram paciência comigo quando notavam que eu era estrangeiro”, recorda de quando não dominava bem o português e se atrapalhava, por exemplo, na numeração. Pelo que se ouve entre os alunos, somos bem falados entre nossos vizinhos das fronteiras ao norte. “Na Colômbia se tem um conceito bem bacana dos brasileiros”, explica o colombiano John Aguirre, há oito anos no Brasil, dono de um quiosque em Taguatinga, a cidade economicamente mais forte do Distrito Federal. Aguirre é um exemplo de imigrante que não pensa em voltar. A forma como é tratado aqui ajuda? Parece que sim. “Eu comprovei isso aqui (que o brasileiro é bacana), porque o brasileiro é realmente uma pessoa alegre, que gosta de conhecer outras culturas”.
No Peru as pessoas são muito fechadas, e minha maneira de pensar e agir agora é mais livre, porque agora eu posso ser mais livre, num país que me aceita sem preconceitos. Tenho liberdade de dizer o que penso, quero, preciso e desejo
Ada NoemiImigrante peruana
Escutando o que dizem os alunos, não há como não pensar no brasileiro cordial do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, mas sobre essa imagem mítica, a professora Mariza Veloso, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), antecipa que o conceito não tem na realidade relação com bondade ou generosidade. “O homem cordial é aquele que age tanto para o bem quanto para o mal”, ela alerta e explica que “É essa coisa de agir impulsivamente, de maneira até primária no ponto de vista das emoções”. Para Mariza, o brasileiro se diferencia da racionalidade instrumental de outros povos. Ela cita exemplo dos japoneses, que agem com racionalidade e civilidade. Ao tomar conhecimento do que disseram os alunos imigrantes, a professora não se entusiasma. “Porque provavelmente se supõe que eles (os imigrantes) não estão tirando emprego de ninguém, que eles vão embora”, explica Mariza, lembrando a morte por espancamento do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, no Rio, em janeiro deste ano, como exemplo nefasto da intolerância com quem vem de fora, especialmente da África.
Para Mariza, nós brasileiros temos a capacidade de “solidariedade vertical, e não horizontal”. É uma visão hierárquica da sociedade, visão moral da sociedade e não política. Hierarquizamos nossa solidariedade”, e ela ilustra com as relações entre classe média e as empregadas domésticas. No entanto, a socióloga não tem um conceito totalmente negativo da visão dos brasileiros para com os imigrantes. Ela admite que também “Somos legais sim, acolhedores sim”, e para ela isso advém de nossa formação, que é de “cultura porosa, que absorve pessoas que vêm de fora, culturas que vêm de fora”. “De fato, o Brasil tem o que dizer ao resto do mundo em termos de diversidade social, racial. Apesar de todo o racismo estrutural, não há uma guerra, há formas de convivência e, sobretudo, a cultura é feita de misturas”.
Apesar de o senso comum entre os alunos ser o da figura do brasileiro acolhedor, para alguns deles essa relação não foi sempre um mar de rosas. A egípcia Nourhan Hassam foi discriminada em um dos primeiros empregos que arranjou em Brasília, uma rede de lojas que faz bolos caseiros. Ela conta que ouviu de funcionários “Por que você tá aqui? Você tá estrangeiro, você tem que voltar na sua país”. Com firmeza, respondeu que estava trabalhando e que o salário que recebia não saía do bolso desses que a discriminavam. É claro que ficou triste, mas garante que considera o episódio um exemplo isolado. Para a egípcia, no geral o brasileiro é carinhoso, bem receptivo. “Dez por cento ruim, noventa por cento bons”, resume, sorrindo.
A peruana Ada Noemi também sentiu na pele o preconceito por ser imigrante, quando, há um ano, em um ônibus, um sujeito mandou que ela voltasse para o Peru. Ada lembra disso todos os dias, mas a conta que faz é igual à da colega egípcia: “Ele não representa o brasileiro”, garante se referindo ao sujeito do ônibus, assegurando que no Brasil ela pode ser do jeito que realmente é, algo que não conseguia em seu país natal. “No Peru as pessoas são muito fechadas, e minha maneira de pensar e agir agora é mais livre, porque agora eu posso ser mais livre, num país que me aceita sem preconceitos. Tenho liberdade de dizer o que penso, quero, preciso e desejo’.