Por Patricia Faermann, publicado em Jornal GGN –
Sem orientações ou determinações do governo federal e estadual, Exército permanece no Rio. E, enquanto isso, Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e ministros colocam a responsabilidade de respostas nos próprios militares
A Segurança do Rio de Janeiro está em um limbo jurídico. Enquanto o presidente eleito Jair Bolsonaro decidiu não prorrogar a intervenção federal no estado e tampouco foi determinada uma nova operação de GLO (Garantia de Lei e da Ordem), os integrantes do Exército permaneceram no patrulhamento do Rio, protagonizando o episódio recente do fuzilamento de um carro de inocentes, com 80 tiros, neste domingo (07), em Guadalupe.
Apesar da presença dos militares, a intervenção federal na Segurança Pública do Rio foi concluída em dezembro do ano passado. A decisão foi tomada pelo recém eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL), por uma estratégia política: sabia que a continuidade da intervenção prejudicaria seus planos de aprovação de medidas no Congresso.
Mas a estratégia política do governo federal deixou o Estado sem orientações claras do que iria ocorrer. Porque também em dezembro, Bolsonaro disse que a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no estado – a outra opção para que fosse mantida a presença das Forças Armadas – poderia seguir. Para isso, contudo, seria necessária uma nova aprovação parlamentar. Preocupados com a reforma da Previdência e outros temas diversos, o assunto nem tramitou no Congresso.
“Com a subida ao poder, a ascendência de Jair bolsonaro isso está em um limbo, porque a intervenção teve uma data para acabar, que foi no ano passado”, alertou o vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Bruno Shimizu, ao GGN.
“Hoje em dia não se sabe exatamente quem é o responsável pela Segurança Pública do Rio de Janeiro, na medida em que você tem uma intervenção com prazo de validade vencido que não vem sendo acompanhado pelo Governo Federal e ao mesmo tempo não houve a restituição das forças locais, as estaduais de segurança”, continuou.
E, ao mesmo tempo que as orientações não são claras para os integrantes das Forças Armadas que continuam atuando na segurança do Rio de Janeiro, o limbo se propaga para a falta de respostas do governo federal e estadual, que se silenciam diante da responsabilização sobre o homicídio e remetem a incumbência aos próprios militares, seja o Comando Militar do Leste (CML), seja a Justiça Militar.
“O que se tem no Rio é a continuidade de um caos na Segurança Pública que não é recente, é histórico. Mesmo do ponto de vista jurídico há este limbo, no sentido em que não se sabe quem é o responsável pela segurança. A atuação do Exército na intervenção federal a curto prazo já esgotou, mas eles continuam atuando da mesma maneira, por falta de orientações diversas. Então é isso que leva o fato de as Forças Armadas terem atuado nessa violência, chegando ao absurdo do assassinato, do fuzilamento de um cidadão na via pública, algo inédito na história recente no nosso país por forças de segurança”, continuou Shimizu.
Nesta quarta-feira (10), o próprio ministro da Defesa, Fernando Azevedo Silva, indicou a falta de claridade sobre a situação atual, confirmando que a intervenção foi encerrada, mas que agora ela permanece como uma espécie de legado, espelho para o “Plano Estratégico”, ainda que nada tenha sido votado a nível Legislativo ou decretado pelo Executivo. “Será o Plano Estratégico de Segurança Pública para o Rio de Janeiro. Ele estruturará a segurança no estado, em especial a inteligência, que já tem inclusive ajudado as investigações”, disse o ministro.
Mas ao justificar o Exército no caso do fuzilamento, o ministro isolou a responsabilidade nos membros das Forças Armadas, de que se tratou de um caso em que os militares “não seguiram as normas em vigor” e que “é um fato dentro de um contexto de várias operações de Garantia da Lei e da Ordem e de paz”. Mas a GLO tampouco está vigente no estado.
Nesse cenário de incertezas, as declarações tanto a nível federal como do governo estadual remetem aos próprios militares para que eles solucionem o problema. A “tragédia” e “incidente”, como um ponto isolado e fortuito, esteve presente nas declarações de todas as autoridades.
“Foi um incidente bastante trágico. O que eu vi, porém, é que, de imediato, o Exército começou a apurar esses fatos e tomar as providências que foram cabíveis. Afastou lá parte dos envolvidos. Submeteu eles a prisão. E tem que apurar, né…”, disse o ministro da Justiça, Sérgio Moro, afastando a própria competência da pasta no caso, durante o programa “Conversa com Bial”, da Globo, três dias depois dos acontecimentos.
O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), foi além no afastamento da competência: “Não sou juiz da causa. Não estava no local. Não era a Polícia Militar. Quem tem que avaliar todos esses fatos é a administração militar. Não me cabe fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos. É preciso que a auditoria militar e a Justiça Militar e o Exército faça as devidas investigações”, disse.
E passados quatro dias desde o fuzilamento, o presidente Jair Bolsonaro permanece em silêncio. Indiretamente, uma posição foi emitida pelo porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, dizendo que Bolsonaro “confia na Justiça Militar”. “O presidente falou: apure o que tem que ser apurado”, foi a declaração oficial dada, por meio do ministro da Defesa, três depois do homicídio.
Cabendo às próprias Forças Armadas dar estas respostas, o Comando Militar do Leste já cometeu contradições e passou as informações que julgava necessárias em defesa do Exército. O primeiro comunicado, na mesma tarde de domingo (07), foi uma explicação de que os militares tinham reagido à “injusta agressão” de um veículo, após um assalto nas imediações.
Foram necessárias mobilizações para que o CML mudasse o tom e emitisse outro comunicado, no dia seguinte, de que repudiava “veementemente” excessos ou abusos cometidos. E somente após ver “inconsistências” entre a versão dada pelos militares e os relatos na imprensa é que o Exército decidiu prender 10 dos 12 militares envolvidos. Não se sabe o andamento da apuração.
O vice-presidente do IBCCRIM e doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo analisa com receio o tom adotado nessa investigação. “Preocupa muito que o CML e as autoridades superiores haviam publicizado a primeira versão dos fatos a partir de uma sustentação de que seria legítima defesa. ‘Legítima defesa’ com 80 tiros! Só depois com o trabalho da imprensa, da própria sociedade civil, é que houve esse recuo.”
“Se fosse um criminoso [morto pelos militares], seria homicídio da mesma maneira. A Constituição Federal não faz nenhuma diferença entre matar alguém que cometeu um crime e matar quem não cometeu, é um homicídio. Nesse caso chama a atenção porque era uma família, não tinha arma, mas não há carta branca para se matar, mesmo alguém que se acredita não ser um ‘cidadão de bem’”, lamentou Shimizu.