Por que no laudo do laboratório o resultado precisa vir todo em caixa alta? Quase que te acusando e ameaçando. Sim, peguei covid. Calma, queridas e queridos, já estou bem, mesmo que agora mesmo fui levar o lixo até a rua e precisei dar umas duas paradinhas para tomar fôlego.
Por Paulo Freire, compartilhado de Projeto Colabora
Me senti meique na obrigação de escrever aqui, sem querer estragar festa de ninguém. Nós todos baixamos a guarda. Uma variante depois da outra, os números de mortes diminuindo, o reveião chegando. O quadro óbvio ficou escancarado na minha fuça: diminuíram mortes e internações por causa da vacina. E a certeza: se eu não tivesse tomado as três doses certamente estaria internado, ou, quem sabe, passado pro outro lado do córgo… Não se iludam com as palavras “os sintomas são mais fracos”, claro que são, mas são horríveis!
Passei 2 dias e duas noites bastante apurado. Devidamente vigiado por filhos, namorada e amigos. Chega um momento que você pensa: se doer mais, se o fôlego piorar, se eu perceber que não vou conseguir me levantar, qual é o limite para pedir socorro? Graças à vacina e mais uma coisinha que já explico, não cheguei nesse limite. Aguentei firme e não atormentei ninguém, por mais que estivessem sempre a postos. Agora tô bão! O fôlego curto e a voz meio capenga, mas já tô tocando viola com disposição, lendo, cozinhando. Claro, em quarentena, e vou passar o ano aqui sozinho. Mas tem uma coisa muito importante. Vai ouvindo.
Sabe o que atropela a cachola quando o vivente finalmente consegue respirar? É uma preocupação que te sacode, medonha: será que eu passei covid pra alguém? Sensação de possível culpa, caçando alguma irresponsabilidade nos últimos encontros. No Natal participei de 2 festas. Com a minha família, estávamos em 7 pessoas, e um almoço na casa da namorada, 6 pessoas. Assim que li a palavra escrita acima, do laudo do laboratório, liguei, escrevi, para todas as pessoas que encontrei, com um misto de preocupação e vergonha. E se eu passei para alguém? Pessoas que eu amo. Mesmo se não conhecesse, caceta! E se eu passo pra alguém essa porcaria!
Não tô querendo apavorar ninguém. Todos nós sabemos os sinais da doença. Só me parece que os números são frios. Mesmo que seja da grandeza de 620.000. Esses os mortos, fora os que sofreram e estão sofrendo. Já vi gente dizendo, conformada: ah, todos nós vamos pegar mesmo… Não queiram, o baguio é desesperador.
Antes dos finalmente, preciso também dizer que só não escrevo sobre as atitudes do presidente e sua turma pra não ficar um texto ainda mais gigante. Só quero falar que quando eu via uma nova notícia sobre a irreponsabilidade criminosa deles, que geralmente me dá raiva e já saio esbravejando, pois na situação que eu tava, via que só ia conseguir chorar…
Mas arremato com uma boa notícia. Vai ouvindo. Isso é muito sério. No segundo dia, sabia que tinha que reagir. Fiz alguns alongamentos para melhorar as dores, exercícios de respiração para ajudar no fôlego. E tomei água, muita água. Não consegui jantar. Fui pra cama, deitei e peguei no sono. Muita água. Levantei para fazer xixi algumas vezes, e fui sentindo uma diferença. É que durante o dia, sério, até fazer xixi cansava. Mas conforme levantava, me aliviava, e voltava para a cama, sentia que o corpo começava a reagir. Inté que aconteceu. Vai ouvindo…
Nesse levanta, dorme, acorda, sonha, eu percebi que alguém havia se sentado na beira da cama, perto dos meus pés. Moro sozinho. Era umas 4 da manhã e eu tinha perfeita consciência que estava no lugar que separa o sonho com o acordar. Vi uma pessoa pequena. Senti um certo medo, não, peraí, era mais um grande respeito. Precisava levantar para mijar, e fui pensando, não posso me levantar ao lado dele, não posso incomodar. Vou levantar pelo outro lado da cama, dar a volta e entrar no banheiro. Fiquei um instante assim, até que fui pro outro lado da cama, levantei e, claro, não vi ninguém sentado na beira da cama. Tinha ido embora… Senti disposição e amassei uma banana. Refiz com clareza a lista de pessoas com quem estive para não deixar ninguém de fora, escrevi em um papel e voltei a dormir. Quando acordei, procurei todos mais uma vez.
O que era? Um anjo? O capeta que ronda o violeiro? Tentei lembrar bem o que eu havia visto e sentido naquele momento. Nem anjo, nem o tinhoso. Veio forte a certeza que era uma viagem, como os indígenas fazem, levados pelos pajés, para o mundo das águas, o mundo da cura. Aquela pessoa veio me acudir em plena travessia. Pensei também no que mais nos socorreu nesse tempo de pandemia: o amor que nos liga, acudindo as aflições. A mão estendida. O cuidado que temos que ter com o amor que nos mantém vivos. Zente, tô bem de verdade, não precisa preocupar.
Feliz 2022.
Paulo Freire é violeiro e compositor
OBS: TEXTO DO FACEBOOK DO VIOLEIRO E COMPOSITOR Paulo Freire