Posto abastece oásis na vida de Bucco

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta feita, Cícero César se inspira no Brasil que “nacionaliza” o preço dos combustíveis, que falava outro idioma no governo anterior, e mostra que basta o quanto um emprego com carteira assinada pode melhorar o astral de uma família.

“Não é que certo Bucco*, depois de tanto tempo, conseguiu arrumar um emprego de carteira assinada e tudo? Ele abastece os bólidos do posto de combustíveis dos Cappellis* e está satisfeitíssimo com isso.




Ele entrou nessa depois de ter ficado sem emprego por um bom tempo. As coisas foram definhando para ele. Da pequena loja de aparelhos eletrônicos não sobrou muita coisa: Buccos n´água! Como ele não era tão habilidoso como os demais membros da família, alguma providência tinha de ser tomada. E assim se fez a luz, a sorte lhe bateu à porta.

Bucco não ficou ruim no uniforme, que era apenas uns dois números maiores que o dele. Mas fazer o quê? Onde já se viu uniforme de frentista muito justo? Só nas mulheres. Postos de gasolina ainda exploram o corpo da mulher desse jeito.

Falando em mulher, a companheira dele estava no seu encalço. Ela agora era coordenadora pedagógica de escola pública, o que lhe trouxe comichões de ascensão social. Bucco estranhava a mistura das duas mulheres em uma: ela citava muito o tal do Paulo Freire e outros termos de compreensão difícil para quem não vive de perto a realidade escolar. Ela mudou até o jeito de se vestir, ora essa.

Bucco não entendia muito por que ela agora tinha mania de usar echarpe e sapatos de bico fino em qualquer ocasião.
A velha calça jeans também não saía mais do armário. Ela mudou também os óculos, que ganharam uma armação de tonalidade “pitanga”.

Além disso, cravou uma imensa rosa no braço esquerdo; e no pulso, o nome dos três filhos. Enfim, ela trabalhava muito e muito longe de casa. Sem emprego, Bucco ficava cada vez mais jururu ao vê-la chegar exausta do trabalho.

Por vezes, ela jantava com o celular ao alcance da mão, para qualquer eventualidade, era essa a justificativa. Logo ela, que durante muito tempo proibiu as crianças de usarem os celulares durante as refeições.

Bucco já estava com medo de perdê-la para uma reunião ou coisa do tipo até que surgiu a referida oportunidade de trabalho certo com carteira assinada e tudo. Bucco mandou currículo de uma página (orientado pela mulher), aguardou e, depois de uma breve entrevista com o gerente do estabelecimento, foi contratado.

Pronto. Deu conta do serviço direitinho em tempo recorde. Foi proveitoso ele ter aprendido a passar cartão na loja. E ele era bom em matemática caso houvesse a necessidade de dar troco.

E morava perto. Não era problema nenhum o deslocamento. O posto de gasolina “Oásis Oil” ficava às margens da rodovia movimentada em cujas periferias cresceram os loteamentos onde a família morava. Bastava que Bucco andasse para trás e se chegava ao ermo de sua casa, lugar em que a depender da chuva os sapos ainda coaxavam.

Era estranho ver a certa distância aquele posto com seus letreiros coloridos, suas ofertas, seus bonecos infláveis, sua imensa e bem iluminada loja de conveniência, suas enormes bombas de combustível.

De vez em quando, apareciam uns vendedores de balas e biscoitos ou de sachês para automóveis. Alguns eram conhecidos, vizinhos de Bucco. Outros vinham de longe. A estes, Bucco entregaria as chaves do banheiro se o gerente lhe desse a permissão. Era curioso perceber que usavam, em vez de um chaveiro com o logo do estabelecimento, tocos de cabos de vassoura.

Sendo novato, Bucco não saberia responder exatamente o porquê desta gambiarra. São segredos de um posto, por certo. Assim como poucos clientes saberiam que no local para a troca de óleo os funcionários guardam as bicicletas – com cadeado; ou que falta menos de um ano para o gerente quitar seu automóvel – embora ele já esteja acalentando sonhos de comprar um mais novo e mais possante ainda, porque quem não arrisca não petisca.

Há também uma gaiola com um passarinho que só gente como o Bucco saberia o nome. Era um trinca-ferro? Que espécie de Bucco é esse que não sabe nem nome de passarinho? De bico em bico, o bico era agora o da bomba de gasolina.

Quando o dia de serviço acaba, está quase passando da hora de buscar as crianças na escola, que fica a meio caminho entre o posto e a casa do Bucco. Ele já os levou, agora que os busque. Bucco prefere ir sem uniforme, de banho tomado, mas isto depende muito do movimento. Já houve vezes em que ele deixou as crianças em casa e retornou ao trabalho. São as inconveniências de se morar perto.


É engraçado ver os três miúdos mais o Bucco andar pela rua sem asfalto com aquela luz que não se apaga ao fundo. Ele ainda ri quando se lembra que certa vez o filho menor perguntou se o pai gostava de perfume de gasolina. Ri do nada, gostosamente para dentro, se divertindo com as associações que as crianças fazem.


Era para o Bucco encontrar a mulher lá perto do posto hoje, mas não deu. O filho mais velho tem treino extra no futebol e o Bucco faz questão de levá-lo. E claro, tem que arrumar os outros dois, que vão a tiracolo.

Por vezes, é bom tomar um cappuccino na cafeteria para quebrar a rotina. Isto é, quando sobra algum dinheiro, que naquela família é sempre bem contadinho, sem muito espaço para extravagâncias.


De quando em quando, a senhora coordenadora está tão cansada que vem de carro de aplicativo em vez de ônibus. Com a chegada do posto, melhorou muito a segurança no local. Dizem até que os terrenos se valorizaram. Já tem gente querendo ficar. Entretanto, por ela, a família moraria mais perto do seu local de trabalho.


Em casa ela arranja tempo para fazer o almoço do dia seguinte, para receber atualizações sobre a reunião do outro dia e para passar a loção hidratante que tem feito um baita sucesso entre as coordenadoras .

No quarto, apesar da luz do posto quase a ofuscar, Bucco a olha com um carinho que se mistura a um inexplicável desejo. Ela está mais bonita, deve ser o efeito do hidratante, vá saber.

No próximo pagamento, eles irão comprar uma cortina mais grossa com blecaute, para o quarto dele e para o dos filhos.

Intimamente, ele sonha em fazer uma tatuagem também. Colocar o nome dos três filhos e o dela o peito. Mas isto ficará para o décimo-terceiro.”

*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna nem sempre sensível com os problemas do próximo, mas que neste cpítulo deu uma dentro, admitindo um Bucco no seu posto de combustível.

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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