E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, vai em ritmo de marchinha de carnval. Mas como ele não explica o motivo do título de sua crônica, este editor nem sempre folião, coloca foto do post e vídeo com o Bloco Pérola da Gunabara tocando, no sábado 22 de fevereiro, em Paquetá. Ah, e tocando “Carinhoso”, no ritmo de… marchinha.
“A gente sabe quando o Carnaval se aproxima: a gente começa a ouvir as deliciosas marchinhas outra vez, é isso. Nos supermercados, nas lojas de rua, etc. É uma espécie de promessa de felicidade. Se tivesse lança-perfume no mercado, eu juro que eu borrifava o meu lenço de seda azul e dava uma cafungada que só é permitida em datas festivas como essa, a da maior festa popular do mundo, brasileiramente falando.
É uma coisa louca porque as marchinhas, se a gente duvidar, já estavam aí feito o sol, antes dos dinossauros, talvez átimos de segundo depois da grande explosão que é um Fla-Flu. No entanto, não cheiram a guardado. E não são como muitas novidades por aí, que, cá entre nós, não fedem nem cheiram.
Talvez as marchinhas sejam como as cigarras ou como aqueles bichos de luz. Quando chega o momento propício, elas brotam quase espontaneamente. Mas é instinto de sobrevivência, e não espontaneidade.
Eu gosto de marchinha de Carnaval, mais do que de samba-enredo. Não quero nem tocar no ponto do processo de composição, do que dá mais trabalho para fazer, do que é mais elaborado, se uma marchinha ou um samba-enredo. Não hei de botar a mão nesta cumbuca.
Samba-enredo é uma beleza, né? Mas a marchinha também é uma beleza. Enfim, música de Carnaval é uma beleza, porque não podemos nos esquecer dos frevos e maracatus.
Eu jamais me esqueço que ouvi Luiz Caldas antes dos meus amigos do Rio de Janeiro. É que eu viajava direto pro nordeste. E lá Luiz Caldas já passava o batom azul na boca e na porta do céu antes de estourar no sul maravilha.
Mas o samba carioca é o que há. Quando eu ouço uma canção como “Lua sobre sangue”, que Cláudio Jorge e Aldir Blanc fizeram para honrar as cores da bandeira do Salgueiro, eu fico imaginando a reunião de bambas elencadas na letra:
Canta o Gargalhada
Na voz do Anescar
Geraldo Babão e o Bala são de lá
Noel Rosa de Oliveira
Pindoga, Iracy
O samba vem daí
Peguei pesado, né? Chamei logo Aldir Blanc para abrir bem os caminhos e os trabalhos. Tem uma coisa do Aldir que era bacana, que era o seguinte: ele não fazia folclore, não fazia o tipo intelectual genial letrista sabichão do caralho, embora o fosse. Se indagado a respeito do seu vasto conhecimento musical, ele dizia que aprendeu um montão de música, de samba, com um pescador, acho que era tio dele. Quer dizer, o sujeito ficava ali naquela tranquilidade e enquanto o peixe não mordia a isca, o sujeito ia passando a música em revista. Bebendo da fonte.
Samba! Samba! Samba!
Quando eu morava em Vila Isabel, comecei a acordar de madrugada todo dia. Alguma fobia, uma coisa assim. Para me distrair ficava ouvindo um programa no rádio sobre samba. Não me lembro de nada nem de ninguém – têm coisas que voltam à tona não sei direito por quê. Elas simplesmente vêm. Mas sabia que era de samba. Acho que era um programa de entrevistas também.
Será que tinha mais gente assistindo ao programa, gente que nem eu, que por medo acordava de madrugada? Ou a audiência era formada por aquela galera que trabalha à noite, como os porteiros, os seguranças, os vigias etc.?
Eu não sou do samba, poderia até ter sido talvez, acho que levo jeito pra letrar, mas não sou do samba. Para ser da música, é preciso ter memória, o que passa pelo entendimento que a música brasileira pode ser entendida por uma linha evolutiva. Entendida ou estendida como roupas no varal, mas ainda assim a linha evolutiva existe e exige respeito.
A memória não tem sido meu forte, talvez seja por isso que eu tenha escrito tanto sobre a memória, em uma tentativa de registrar alguns flashes, algumas reminiscências. Antes que tudo se borre. Antes que eu me borre de medo.
Eu conheço as grandes escolas da tevê, admiro todos os esforços carnavalescos, acho o desfile uma coisa linda e necessária – há algo nele que funciona como uma válvula de escape, como uma grande compensação. Mas para sair de casa para ver escola na Sapucaí, para desfilar, não creio que eu tenha tal coragem.
Eu gosto de ir a bailinhos de Carnaval para ouvir as velhas fanfarras tocando as velhas canções. É esquisito, mas eu gosto. E tem mais, eu acho que as letras são muito boas e que as melodias são fáceis de memorizar. E que de vez em quando se topa com duplos sentidos, com insinuações de cunho sexual, com gracejos, com observações sobre os tipos sociais etc.
Quer saber, quando a gente percebe, já tá cantando alguma coisa. E pulando. E deixando a cerveja cair.
E não é de se estranhar se a música nos remeter ao passado, ao tempos idos. Quer dizer, a canção funciona como condutora de memórias. Dela não se espera uma análise detida das relações entre letra e música. Apenas os traços de uma vida que são repassados enquanto durar o tempo da canção, da marchinha.
Fecho o tempo com este singelo haikai em homenagem ao passar dos anos:
Ano passado eu pot-porri
Este ano eu pot-porrei de novo!“
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.