Governo federal lança plano para garantir direitos dos ciganos, mas representantes de diferentes etnias denunciam falta de ações efetivas
Por Micael Olegário, compartilhado de Projeto Colabora
na foto: Povos ciganos enfrentam desafios e preconceitos; ciganas entrevistadas na série Divas e as Calins de MT (Foto: Karen Ferreira)
“É muito injusto o que acontece”. A frase é da fotógrafa Rosecler Winter, 61 anos, mais conhecida como Rose, moradora de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre. O sentimento de injustiça está atrelado ao cotidiano de preconceitos e marginalização vivenciado pelos povos ciganos no Rio Grande do Sul. Uma rápida pesquisa do verbo “ciganear” em um dicionário permite compreender a profundidade dos pré-conceitos que afetam as etnias ciganas no Brasil. Entre as diferentes definições da palavra estão levar uma vida errante e agir com falsidade.
Descendente de imigrantes alemães, Rose pertence à etnia Sinti, um dos três principais ramos dos povos ciganos no país. A profissão de fotógrafa é uma herança do pai, Nilo Iloire Winter. Legado que também transmitiu ao filho Kim Winter Flores. Para ela, ser cigana é ter que enfrentar olhares de desconfiança constantes. Nos últimos anos, ela foi levada a fechar seu estúdio e perdeu muitos clientes. O motivo: a descoberta de sua origem cigana.
“O cigano é rotulado, não importa a etnia. No momento que sabem que tu é (cigana), a pessoa perde a amizade, perde o trabalho O estúdio fotográfico aqui que é uma coisa de família, já tinha mais de 50 anos, quando foi em 2014, eu tive que fechar”, descreve Rose Winter. Em um dos piores episódios de ódio e preconceito, ela conta ter sido atacada por um grupo de skinheads nazistas perto dos trilhos do Trensurb, em Porto Alegre: “Eles tentaram me jogar nos trilhos do trem chegando e fui salva por um casal LGBT+”.
Não estamos nas estatísticas do SUS e da educação. Estamos completamente invisibilizados e o Estado, durante anos e anos, só aplicou políticas persecutórias, racistas e violentas. Não quis saber de cigano
Aluízio de Azevedo
Pesquisador e produtor cultural da etnia Calon
Em agosto deste ano, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) lançou o Plano Nacional de Políticas para Povos Ciganos. Entre os objetivos do decreto, está o combate ao anticiganismo, o reconhecimento da cultura e dos modos de vida dos ciganos, além da elaboração de políticas públicas para garantir os direitos dessa parcela da população brasileira.
Apesar de representar uma conquista política para os movimentos dos povos ciganos, o documento tem sido alvo de críticas pelo pouco detalhamento e a ausência de medidas práticas. “Esse plano foi criado e construído sem qualquer diálogo com os povos ciganos, foi imposto de cima para baixo. É um plano que, se você for olhar, é uma vergonha do ponto de vista da construção, porque tem duas páginas. Na área da saúde, que é onde eu pesquisei, tem uma única linha”, lamenta Aluízio de Azevedo, pesquisador e produtor cultural pertencente à etnia Calon.
Doutor em Informação e Comunicação em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Aluízio aponta que o decreto sequer menciona os resultados das ações do programa Caravana Brasil Cigano, série de encontros de escuta com ciganos de diferentes regiões do Brasil promovidos pelo MIR.
Integrante da Associação Estadual das Etnias Ciganas do Mato Grosso e do coletivo “Ciganos Juntos Somos Mais Fortes”, o pesquisador descreve a dificuldade em alcançar medidas efetivas para atender às necessidades dos povos ciganos. Uma delas é a carência de dados atualizados sobre a população cigana no Brasil. Estimativas do IBGE de 2011 indicavam entre 800 mil a um milhão. O Censo 2020 não investigou esse recorte da população brasileira.
“A gente também não está na história oficial, nos livros didáticos ou nos currículos escolares. Não estamos nas estatísticas do SUS e da educação. Estamos completamente invisibilizados e o Estado, durante anos e anos, só aplicou políticas persecutórias, racistas e violentas. Não quis saber de cigano”, complementa Aluízio, natural de Tangará da Serra (MT).
Origem e perseguição
No Brasil, as principais etnias ciganas são Rom, Calon e Sinti, entre essas ainda existem diversos subgrupos, clãs e nações. Uma das imagens mais comuns associada a esses povos é a da itinerância. Porém, atualmente nem todas as etnias mantêm essa tradição, muitos já estabeleceram residência fixa, principalmente entre os Rom. Ser cigano também não tem nada a ver com uma crença religiosa, mas sim com a descendência: só é considerado cigano quem possui mãe e pai ciganos.
A origem desses povos é controversa, porém, a versão mais aceita é de que teriam surgido na região da Índia. Com o passar dos anos, os ciganos se espalharam por outros territórios do Oriente Médio e Europa – até chegar nas Américas no período colonial, na maioria dos casos expulsos e deportados de países como Portugal, França, Itália, Espanha e Alemanha.
Professor e mestre em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Sandro Rista explica que a itinerância dos ciganos nunca foi apenas uma escolha, ainda que tenha sido incorporada na cultura desses povos. Ainda segundo ele, a resistência de interagir socialmente de algumas etnias ciganas está ligada a séculos de perseguição.
Eles acham que vão roubar na cidade deles ou que querem tomar a terra de alguém, são vários os preconceitos e em algumas cidades não tem diálogo nenhum
Núbia Ribas
Produtora cultural e descendente de Calon
Em Minas Gerais, entre o final do século XIX e início do século XX, ciganos eram perseguidos pela polícia e obrigados a fugir de seus acampamentos, episódio que ficou conhecido como as “Correrias Ciganas”. Durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se que entre 250 a 500 mil ciganos tenham sido mortos em campos de concentração nazistas, no que se define como “Porajmos” (devorar na língua Romani) ou Holocausto Cigano.
“A gente vê uma falta de critério das pessoas para com ciganos. Falta até uma humanização com os povos ciganos no geral. E talvez isso se resolva no momento em que as pessoas conhecerem os costumes e as tradições. Conhecerem as perseguições históricas”, argumenta Sandro Rista, que faz parte da etnia Rom e atua como professor de História em uma escola pública do município de São Francisco de Assis (RS).
De acordo com Aluízio de Azevedo, entre os resultados desse histórico de marginalização, os ciganos acabaram excluídos de discussões sobre habitação e da organização da vida nas cidades, justamente também por conta da itinerância. “Fomos excluídos da divisão do território nacional, assim como outros povos e outras pessoas pobres”, comenta o pesquisador, que compara essa situação com a dos povos indígenas, que possuem origens ligadas à itinerância.
Anticiganismo e diversidade
Descendente de ciganos Calon e produtora cultural em Charqueadas (RS), Núbia Regina Ribas descreve os desafios enfrentados por grupos que seguem itinerantes para montar seus acampamentos em cidades gaúchas – os Calon são a principal etnia que preserva a tradição da itinerância. “Está cada vez mais difícil eles conseguirem espaços para acampar nos municípios, mesmo com as portarias que já existem”, enfatiza Núbia.
Durante a pandemia de Covid-19, Núbia relata que muitas organizações voluntárias negaram ajuda ao descobrir que seria destinada para ciganos. Durante alguns anos, ela fez parte do Instituto Cigano do Brasil e atualmente atua com a Rede Brasileira dos Povos Ciganos (RBPC), na defesa dos direitos e políticas públicas para grupos Calon.
Núbia também critica o plano elaborado pelo MIR e que, segundo a ativista, desconsidera a realidade e as necessidades particulares de cada etnia em seu contexto. Além disso, ela vê com desconfiança novas legislações, uma vez que, as atuais políticas são desrespeitadas pelos municípios, como a portaria n°4.384/2018 que instituiu normas para os atendimentos de saúde aos ciganos. “Eles acham que vão roubar na cidade deles ou que querem tomar a terra de alguém, são vários os preconceitos e em algumas cidades não tem diálogo nenhum”, pontua.
Na visão de Aluízio de Azevedo, para que as políticas públicas para os povos ciganos sejam efetivas, é necessário haver a circulação e apropriação pelos diferentes movimentos e etnias. “Os calons têm um estilo de vida, os Rom têm outro. Então, é importante reconhecer, saber diferenciar, entender que são culturas diferentes”, destaca o pesquisador.
Desde que assumiu o cargo de professor, Sandro Rista afirma nunca ter sido discriminado por um estudante. Por outro lado, enfrentou problemas como uma colega docente que somente o chamava de cigano, nunca pelo nome, mesmo dentro da escola e na presença dos alunos. “Onde ela me via, se fosse na rua ou dentro da escola, era só cigano. Eu pedi: ‘olha, colega a gente trabalha junto, quando a gente tá fora da escola e quer me chamar de cigano, tudo bem. Mas, aqui dentro da escola, ou pelo nome ou por professor, para não gerar problema com os alunos’”, relata ele.
Sandro admite que o problema não está na palavra em si, mas nos estereótipos construídos em torno dos ciganos, como a trapaça e o roubo. Esses discursos e as práticas de ódio atreladas a eles fazem com que muitos prefiram esconder sua origem, para evitar ataques como o sofrido pela fotógrafa Rose Winter.
“Tem bastante ciganos aqui que não se reconhecem, preferem se dizer alemães para não ter o problema do preconceito”, descreve Rose sobre a realidade de São Leopoldo, cidade conhecida como berço da colonização alemã no Rio Grande do Sul. No estado, a maioria das etnias ciganas estão concentradas em cidades de fronteira com a Argentina e Uruguai, sendo considerados povos tradicionais do bioma Pampa.
Oralidade, cultura e artes visuais
Presidente da Associação Cigana Itinerante do Rio Grande do Sul e gestora do Comitê dos Povos Tradicionais do Pampa, Rose conta que a maioria dos Sinti no Rio Grande do Sul sempre esteve ligada às artes, incluindo muitos grupos de ciganos circenses. Apesar disso, poucos circos se identificam dessa forma. “É triste, mas se as pessoas sabem que aquele circo é de cigano, eles não vão entrar (no município)”, explica a fotógrafa.
Rose conta que durante muitos anos também viajou por diferentes estados e países vizinhos, como Argentina e Uruguai. Desde os 14 anos também faz leitura da sorte, uma das características culturais das ciganas, junto das danças, como a Rumba Gitana, Ghawaze, Rom e Khalbelia, marcadas pela alegria e mistura de diferentes elementos.
Os vestidos e o uso de metais preciosos, inclusive nos dentes, são outros aspectos que compõem a cultura dos povos ciganos. Núbia Ribas ressalta, contudo, que existem diferenças no poder aquisitivo de cada grupo e etnia, o que interfere nos acampamentos e nas vestimentas. “As ciganas que tem um poder aquisitivo maior, elas estão sempre vestidas com os vestidos mais de festa. Já as ciganas que não tem tanto poder aquisitivo vão usar uma saia mais simples”, acrescenta.
Na culinária, a simplicidade é valorizada e é acompanhada de diferentes temperos e ervas medicinais, fruto também de uma relação próxima com a natureza e da valorização do benzimento. Outra marca das tradições ciganas é a oralidade. A maioria das línguas e dialetos ciganos são ágrafos, como o Romani, idioma dos Rom, e o Chib, falado pelos Calon.
A maioria desses elementos das culturas ciganas estão registrados em produções audiovisuais como a série “Diva e as Calins de MT”, produção da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso, dirigida por Aluizio de Azevedo. Segundo o produtor cultural Calon, os documentários e filmes têm sido uma das alternativas para evitar a perda de tradições, um desafio encarado por diferentes culturas orais.
“É uma cultura milenar que enriquece a nossa diversidade brasileira. Muitas das características culturais do brasileiro que se atribuem aos portugueses, de verdade, são dos ciganos. Por exemplo, se você pensar a moda de viola, o sertanejo, isso é um traço muito característico dos calons”, ressalta Aluízio. Uma das produções audiovisuais recentes do produtor cultural é o filme “Caminhos Ciganos”, que também documenta a presença de ciganos em diferentes localidades do Brasil e de Portugal.
Segundo Aluízio, esses movimentos permitem começar a quebrar barreiras entre os ciganos e não ciganos. “É uma construção histórica que vai se desenhando. Antes também os casamentos eram muito mais endogâmicos. Hoje já tem muito mais pessoas ciganas casando com não ciganas. Tem muito mais ciganos frequentando a escola, com acesso à educação”, complementa o pesquisador e ativista.
Entre os depoimentos de Aluízio, Sandro, Núbia e Rose, ecoam as mazelas e os preconceitos que afetam os povos ciganos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Do mesmo modo, transparece a diversidade e a riqueza cultural das diferentes etnias e de suas tradições, relegadas a uma posição subalterna na história do Brasil, justamente o país que possivelmente teve o único presidente descendente de ciganos, Juscelino Kubitschek (1956-1961).