As amarras constantes no PLP 93 apontam para uma redução continuada da capacidade de o Estado recuperar o seu protagonismo na economia.
Por Paulo Kliass, compartilhado de Jornal GGN
As boas notícias no campo da economia na conjuntura mais imediata lançam uma cortina de fumaça sobre as difíceis perspectivas que já estão encomendadas para essa mesma área econômica para o médio e longo prazos. A mais recente lua de mel do financismo com o Ministro da Fazenda aponta para quais são as verdadeiras propostas que o comando deste setor do governo apresenta para a crise de estagnação estrutural do ritmo das atividades que o País atravessa há um certo tempo. Trata-se de preservar a austeridade fiscal, manter intocável a essência do ambiente em favor do rentismo financista e estimular o avanço do capital em áreas até então reservadas ao Estado.
A um observador desavisado pode parecer estranho que haja tantas manchetes elogiosas à austeridade fiscal do novo arcabouço, editorais louvando as medidas constantes na proposta de Reforma Tributária e mesmo capas positivas para Fernando Haddad nas mesmas revistas semanais que passaram décadas demonizando Lula e o Partido dos Trabalhadores. O que explica esse aparente paradoxo? Na verdade, os mesmos 60 indivíduos da nata do sistema financeiro que responderam à famosa pesquisa Quaest sobre o governo demonstraram acreditar na capacidade do ex-prefeito de São Paulo, mas mantinham elevadíssima desconfiança em relação ao Presidente da República.
O fato concreto é que as amarras constantes no PLP 93, que estabelece as bases do Novo Arcabouço Fiscal, apontam para uma redução continuada da capacidade de o Estado brasileiro recuperar o seu necessário protagonismo na esfera da economia. A proposta elaborada por Haddad, depois de consultar apenas o Presidente do Banco Central e alguns dirigentes de bancos e instituições financeiras, mantém a busca por superávit primário e consolida regras para que as despesas orçamentárias estejam proibidas de crescer no mesmo ritmo da evolução das receitas. Assim os gastos só podem aumentar 70% da elevação dos ingressos fiscais.
Teto do Haddad e a redução de gastos públicos.
A perpetuação do espírito demoníaco da austeridade no trato das contas públicas anuncia severas dificuldades nos exercícios próximos. A manutenção de áreas essenciais como saúde e educação, por exemplo, na contabilidade do novo teto do Haddad já faz com que dirigentes do Tesouro Nacional anunciem, desde o mês de março, a necessidade do envio de uma proposta para retirar do corpo da Constituição os mínimos obrigatórios para estabelecimento das rubricas orçamentárias para esses setores. A intenção é eliminar a vinculação compulsória dos gastos da saúde (15%) e da educação (18%) com a receita corrente do governo federal. Uma sandice de inspiração liberaloide, que nem mesmo os governos Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes conseguiram realizar.
Além destes dois grupos de serviços públicos mais sensíveis, há um conjunto de outros setores que serão certamente prejudicados com a vigência do novo arcabouço fiscal. As necessidades em ciência, tecnologia e e inovação, em políticas de combate à fome e à pobreza, as necessidades na área de meio ambiente, as políticas públicas em agricultura familiar, as medidas de saneamento, os orçamentos de previdência social e vários outros campos estarão impossibilitados de contar com recursos orçamentários de acordo coma as reais necessidades da maioria da população. Por outro lado, os fundamentais aportes de recursos em direção às empresas estatais e aos bancos públicos federais também estarão limitados pelas novas regras. O Brasil pode estar voltando, mas o Estado está ficando para trás.
Para fazer face a tal situação, Haddad já anunciou, desde o início, aquilo que apresenta como uma solução miraculosa para a falta de recursos que ele mesmo contribuiu para criar. É importante registrar que o governo montou para si mesmo uma armadilha na condução da política fiscal. Se a política monetária já havia sido sequestrada desde o governo Bolsonaro com a aprovação da lei de independência do BC, o novo governo optou pela entrega – por vontade própria – de todo o potencial existente na política de gastos públicos. Assim, a estratégia para recuperar o nível de investimento na economia passa a depender preponderantemente da ação e do interesse do capital privado.
PPPs: privatização dos serviços públicos.
Diante de tal quadro de limitação da ação do Estado, o Ministro da Fazenda tira de sua cartola a mágica das parcerias público-privadas, as famosas PPPs. A sua utilização avança em quantidade e qualidade. Essa forma peculiar de permitir a privatização de serviços públicos e outros bens e serviços em que o setor público era o principal agente econômico passa ser a regra. Para além da delegação de tais responsabilidades a organizações sociais (OSs) do setor privado na saúde e educação, que avançaram bastante nos 3 níveis de governo ao longo das últimas 2 décadas, agora o governo acena para PPPs em escala crescente em projetos de infraestrutura, meio ambiente, pesquisa e inovação tecnológica e até mesmo presídios. Uma loucura!
Esse é o modelo em que o capital privado passa a comandar os investimentos e a gestão posterior de áreas estratégicas do Estado brasileiro. Ele pode se converter em uma importante mola mestra do novo ciclo de acumulação de capital no País. O governo está preparando uma série de medidas para ampliar o escopo de tais possibilidades de articulação entre o setor público e o setor privado. Dentre as novidades, por exemplo, consta a criação de debêntures incentivadas com garantia governamental e isenção de imposto de renda sobre tais papéis. Essa modalidade de negócio permite a alavancagem de recursos pelo setor privado interessado em fazer negócios em áreas que até há pouco tempo atrás eram de exclusividade do setor público, a exemplo de saúde, educação, saneamento e segurança pública.
Uma das principais diferenças reside na lógica de atuação do capital privado. Quando realiza investimentos em tais setores, o investidor está preocupado apenas e tão somente com a taxa de retorno do capital aplicado e não com a qualidade do serviço prestado à sociedade ou ao cidadão. A busca pela chamada “maximização da rentabilidade” foca unicamente no balanço superavitário entre receitas e despesas de cada projeto. Assim ao elevar receitas e reduzir despesas, o caminho está aberto para o aumento exagerado de tarifas e a diminuição injustificada dos gastos associados à melhoria dos serviços.
PPP não é panaceia para retirada do Estado.
O modelo de PPPs existe desde o governo FHC, mas sua utilização entusiasmada pelos governos estaduais não se localiza apenas nas gestões de governadores tucanos. A Bahia e o Piauí, por exemplo, mantêm há um bom tempo programas de serviços públicos com base nesse tipo de concessão ao capital privado. Não por acaso os últimos governadores tornaram-se ministros de destaque no terceiro mandato de Lula: Rui Costa na Casa Civil e Wellington Dias no Desenvolvimento Social. Esse fenômeno abre a possibilidade de que tal modelo seja efetivamente estabelecido como a regra da expansão desse tipo de serviço público. Ou seja, sua transformação em negócio para o capital privado.
O caso das PPPs para presídios é bastante emblemático dos riscos e consequências da generalização do uso das mesmas. O estado de Minas Gerais foi o primeiro a adotar o modelo para o Presídio de Ribeirão das Neves. Atualmente está em debate o apoio financeiro do BNDES para uma demanda do governador do Rio Grande Sul. Eduardo Leite (PSDB) pretende lançar uso do modelo para um presídio no município de Erechim, com previsão de leilão a ser realizado na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Haja simbolismo de interface entre o as esferas pública e privada.
PPP em presídios: perpetuação da violência, injustiça e desigualdade.
Este talvez seja um dos casos em que o recurso à PPP torna mais evidente a contradição entre o modelo de investimento e gestão privadas e o natureza intrínseca de um serviço público. A transformação de presídios em objeto de acumulação de capital coloca o encarceramento como elemento fundamental para a obtenção de receitas pelo investidor em busca de seu lucro. Quanto maior for o número de presos, maior será a rentabilidade do investimento. Quanto piores forem as condições dos mesmos, menor será a despesa e, portanto, maior a lucratividade do negócio. Esse objetivo vai totalmente na contramão da necessária mudança na política de segurança pública e de encarceramento.
É mais do que sabido que a composição da população carcerária brasileira é majoritariamente feita de jovens e negros, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022 havia 826 mil presos, sendo que os negros representavam 68% do total. O perfil mais jovem dessa parcela é demonstrado pela presença de 46% com idade entre 18 e 29 anos. Além disso, mais de 25% de todos os encarcerados estavam ainda em detenção provisória, sem julgamento nem condenação. A privatização dos presídios opera na lógica de aprofundar esse quadro de injustiças e desigualdades
A incorporação dos objetivos e dos métodos do neoliberalismo por governos progressistas e de esquerda só trouxe péssimos resultados na experiência internacional. Ainda está em tempo de Lula acordar para a necessidade de impedir que essa trilha seja adotada pelo seu governo. Projetos financeiros com incentivos tributários e garantias governamentais para as parcerias público-privadas não podem se converter na panaceia para as necessidades de recuperação do protagonismo do Estado brasileiro.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.