Por Túlio Bucchioni, Esquerda.NET –
Suicídio social. Assim o estudante de medicina do terceiro ano Allan Brum qualificou o que definiria sua situação de acordo com a maioria de seus colegas de curso caso ousasse denunciar a série de violações de direitos humanos ocorridas nos corredores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, uma das mais tradicionais e concorridas escolas do país. Corajosamente, Brum e mais nove colegas não deram ouvidos a todo o assédio moral e as tentativas de intimidação sofridas e vieram a público denunciar uma série de situações de violação de direitos humanos envolvendo casos de estupro e agressão física de mulheres e LGBTs.
Os depoimentos foram dados à Comissão de Direitos Humanos do Estado de São Paulo ontem (11/11), com a presença da promotora do Ministério Público Estadual que cuida do caso, na ocasião de uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa que ouviu estudantes e professores da Faculdade de Medicina da USP. Entre os depoimentos, causaram comoção o de uma estudante que foi vítima de violência sexual e o de outra estudante que sofreu tentativa de estupro; ambas relataram com detalhes os processos físicos e simbólicos de violência a que estiveram submetidas, tendo sido posteriormente desencorajadas pelas entidades estudantis e pela direção da faculdade a denunciarem as violações sob pena de “manchar a imagem da instituição”. Mônica Golçalves, estudante do curso de Saúde Pública da USP e vítima de racismo ao ser barrada na entrada da Faculdade de Medicina mesmo estando com carteirinha e quando simultaneamente pessoas brancas adentravam livremente nos recintos da faculdade, também esteve presente na audiência e relatou como a Comissão Investigativa designada pela faculdade refutou a acusação de racismo, afirmando que tudo não passara de um “estranhamento”.
“Pecamos por omissão e somos responsáveis”
De acordo com Paulo Saldiva, professor da casa e integrante da comissão criada pela congregação da faculdade depois que as vítimas de violência sexual expuseram seus casos na mídia, a regra tem sido que a instituição seja omissa e afaste a sua responsabilidade perante os casos de estupro ou de homofobia recorrentes na faculdade. “Pecamos por omissão e somos responsáveis”, avalia. Esta comissão não possui poder deliberativo e, a priori, tinha como objetivo investigar o “excesso de uso de álcool na faculdade”. Ao que as alunas presentes na audiência prontamente responderam: o problema não é o consumo de álcool, mas sim a conivência da faculdade com estudantes envolvidos em casos de estupro e a rotina de agressões físicas de mulheres e LGBTs. O professor Saldiva concorda: “os problemas da Faculdade de Medicina vão muito além de estudar o álcool; vivemos uma verdadeira crise de valores”, afirmou. O que aparentemente não é uma preocupação compartilhada com seus colegas professores membros da diretoria da faculdade; na audiência, nenhum deles esteve presente.
As praxes – ou “trotes”, no português do Brasil – e as festas são os locais em que as violações costumam acontecer. Diante de uma plateia chocada, em sucessivos depoimentos eram desveladas práticas tão nefastas como exigir de um calouro que se alimente de vômito congelado ou que dispute comida apodrecida com um cachorro; que fique nú e beba bebidas alcóolicas até ficar inconsciente e que veja seus veteranos relacionarem-se sexualmente com prostitutas na frente de todos os outros calouros. Brum, no ano passado, quando cursava o segundo ano, chegou a perder um dente, a abrir o queixo e a sofrer um leve traumatismo craniano depois de uma queda após ter sido obrigado a beber – literalmente, com alguém segurando seu maxilar e introduzindo bebida em sua boca – até perder os sentidos.
Foi em uma dessas festas da faculdade que M. foi violada sexualmente. Depois de aceitar alguns copos de bebida de um colega de sala, provavelmente uma mistura de destilados, M. ficou inconsciente e foi levada para os chamados “cafofos” – locais em que veteranos de faculdade podem levar garotas para ter relações sexuais durante a festa. Ainda inconsciente, M. foi estuprada por um funcionário da faculdade que, de acordo com o inquérito policial do caso, teria pago dinheiro a seguranças e a alunos da faculdade para obter acesso a esse “cafofo”. Quando recuperou a consciência, M. já estava no Hospital das Clínicas acompanhada pelos diretores da atlética e responsáveis pela festa que, segundo a estudante, não lhe deram informações sobre o que tinha acontecido e a desestimularam a denunciar o estupro.
Meses mais tarde, M. decidiu levar o caso adiante e denunciar a violação. Rapidamente ela se tornou referência na faculdade e, se por um lado outras vítimas vieram a sua procura pedindo acolhimento e foi possível fundar o Geni, um coletivo feminista da faculdade (algo como um oásis no deserto), por outro, a pressão de diretores da atlética, colegas e professores se intensificou a níveis insustentáveis. O próprio presidente da audiência, o deputado Adriano Diogo (PT-SP), afirmou no início da sessão que, mesmo quando comparado a seus trabalhos com torturadores, vítimas da Ditadura Civil-Militar e apoiadores do regime na Comissão Estadual da Verdade, a pressão que ele e seus colegas sofreram para não realizar a audiência pública sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP foi de longe muito mais escandalosa.
Cultura machista e homofóbica
De acordo com Heloisa Buarque de Almeida, professora do curso de Ciências Sociais e coordenadora do programa USP Diversidade, praxes violentas e casos e desdobramentos como os da Faculdade de Medicina são característicos “das faculdades e dos cursos de maior prestígio social”. Mesmo quando as diretorias das faculdades não são coniventes com esses casos, como aconteceu na faculdade de medicina da Universidade Federal do ABC, na grande São Paulo, em que houve investigação e expulsão de dois estudantes que cometeram estupros, as instituições brasileiras não estão preparadas para efetivamente punir os crimes contra minorias. Depois de expulso, um desses estudantes entrou com uma ação na justiça e foi reintegrado à faculdade.
A extensão do problema não envolve apenas calouros e veteranos. Em diversas falas durante a audiência ficou evidente o papel de professores, diretores de hospitais e empresas de convênios de saúde em fomentar e reproduzir a cultura machista e homofóbica em festas e praxes da faculdade e em culpabilizar as mulheres ou LGBTs pelas violações ocorridas, desestimulando a denúncia ou o debate público. Este ano um estudante de direito gay foi impedido de entrar em uma área de uma festa da faculdade de medicina junto com seu parceiro e, depois de questionar uma das seguranças, ouviu que “só heterossexuais podem entrar aqui e eu estou cumprindo ordens”. Felizmente o estudante gravou tudo mas, quando os seguranças perceberam que estavam sendo filmados, partiram para a agressão física. Novamente e mesmo com a repercussão na grande mídia brasileira, nada foi feito do caso: nem campanhas oficiais contra a homofobia na faculdade, nem a devida apuração de onde partiram essas ordens discriminatórias.
Para o professor Francisco Miraglia, da Associação dos Docentes da USP, a dificuldade de se instalarem processos investigativos profundos que pudessem responsabilizar violadores de direitos humanos diretamente e, por omissão, a diretoria da faculdade, esbarra na estrutura de poder autoritária da universidade, herdeira direta da ditadura. “É preciso uma profunda democratização da USP e da Faculdade de Medicina; a militarização da universidade, a repressão aos movimentos sociais e a privatização do campus estão ligadas com tudo isso”, disse.
Em sua fala de encerramento, o deputado Adriano Diogo relembrou o histórico de setores importantes da Faculdade de Medicina da USP, como o Departamento de Medicina Legal, que estiveram envolvidos ativamente com a ditadura brasileira e que, dadas as falências do processo brasileiro de transição para a democracia, não tiveram implicações concretas que permitissem efetivamente o desmantelamento de redes de hierarquia de violação de direitos humanos. Enquanto isso, todos esses casos ganharam a mídia. Resta saber por quanto tempo a Faculdade de Medicina e os estudantes violadores seguirão incólumes.