Precisamos chamar o câncer de câncer

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Eufemismos e tabus sobre a doença afastam possibilidades de diagnóstico precoce, que pode garantir até 95% de chance de cura

Por Júlia Pessôa, compartilhado de Projeto Colabora




Desde 2021, toda vez que chega outubro, eu pondero se deveria ou não falar sobre ter câncer de mama, por um milhão de motivos. Talvez o primeiro deles seja o fato de ainda estar em remissão. É o termo médico para quando não há detecção da doença, que pode, no entanto, apenas estar controlada o suficiente para que as tecnologias atuais possam encontra-la no organismo. Até que se passem os cinco anos que a medicina exige para tal, eu não consigo, por superstição ou calejamento prévio, dizer que estou “curada”. E por isso, sempre tenho receio de falar no passado sobre algo que pode, na realidade, estar em pleno gerúndio no meu corpo.

Ao mesmo tempo, uma outra pessoa pode ler um relato, ver um post meu, me ouvir falando, e desconfiar com mais seriedade de um nódulo que sentiu no peito – ou em qualquer parte do corpo – como aconteceu comigo numa noite de março, no auge da pandemia. Se alguma vez minha ansiedade me trouxe algo de útil, foi desta vez, porque imediatamente entrei em contato com minha ginecologista, e no dia seguinte comecei a bateria de exames que em menos de um mês me levaria a começar o tratamento. O diagnóstico precoce foi fundamental para que eu chegasse onde estou hoje, e há dois anos – em remissão.

A colunista Júlia Pessôa em sua última sessão de quimioterapia: é preciso chamar o câncer de câncer (Foto: Arquivo Pessoal - 08/10/2021)
A colunista Júlia Pessôa em sua última sessão de quimioterapia: é preciso chamar o câncer de câncer (Foto: Arquivo Pessoal – 08/10/2021)

Durante todo o processo de diagnóstico, ter uma amiga que havia passado pela mesma loteria às avessas foi fundamental para que eu pudesse ter uma perspectiva de passar por tudo e ficar como ela estava: bem, feliz e saudável – apesar do cagaço generalizado da época, de atravessar uma pandemia em um país desgovernado. Dito tudo isso, eu sempre acho que faço melhor em falar sobre o câncer do que não falar, por desencargo de consciência. Vai que numa dessas eu sou a pessoa viva, vivendo, e com uma farta cabeleira que vai dar esperança a alguém recém-diagnosticada, e com medo de todos os clichês de câncer que a gente passa a vida vendo e ouvindo?

Não é por acaso que estou repetindo a palavra: câncer, câncer, câncer, câncer. A gente vive numa cultura em que muitos nem mencionam o nome “câncer”, optando por eufemismos que ajudam a cravar a sina da doença como sentença: “doença ruim”, “doença maldita”, “C-A”, tudo pra não pronunciar o nome daquilo de quem todo mundo tem medo: câncer. De que vale evitar a palavra quando se tem o diagnóstico? Do que adianta tachar de maldita uma maldição que já está no corpo?

Não falar sobre o câncer não evita que ele aconteça. Ao contrário: faz com que as pessoas não cuidem de investigar qualquer sinal estranho do corpo, por medo de “procurar e achar”. Faz com que repitam misticismos infundados e anticientíficos, que culpabilizam quem já está doente pelo diagnóstico que teve: “são questões mal resolvidas”, “são mágoas que você guardou”, “foi açúcar que você comeu”, “foi falta de exercício físico”.

Infelizmente com conhecimento de causa, hoje sei que o câncer é multifatorial, e tentar achar uma razão pra sua ocorrência é algo que vem justamente do fato de não se poder falar abertamente sobre ele. Sob o risco de causar climão ou motivar olhares de medo, pena, ou uma admiração por ter sido “guerreira” ao enfrentar a doença, quando na verdade não há escolha, não há coragem, não há saída. É realmente a única coisa que se pode fazer quando a intenção é seguir vivendo.

Não falar sobre o câncer além de dados sobre seu crescimento, ou com personagens de filmes, novelas e o escambau que morrerão ou serão heroicos, também leva a lugares-comuns que ajudam muito pouco quem está doente. Lembro muito de, quando raspei os cabelos que começaram a cair em tufos, ouvir de pessoas obviamente bem-intencionadas, que era “só um cabelo”. A cabeça careca nem me incomodava por si só, e hoje vendo fotos da época, acho até que fiz um estilo. O que era pior, na verdade, era justamente o fato de não ser “só um cabelo”. De me olhar no espelho sem um fio de cílio que fosse e ter um lembrete constante de que eu estava doente. Ali, na minha cara, e por todo o meu corpo calvo e com cicatrizes, marcas das quais, inclusive, eu não tenho vergonha alguma. Eles são o mapa do caminho que atravessei e que atestam por onde passei para estar aqui: viva, vivendo e mostrando – para que quem esteja seguindo a mesma rota possa saber que pode chegar a este destino.

Segundo a Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama), se uma pessoa for diagnosticada precocemente, as chances de cura do câncer de mama podem chegar a 95%. E pra chegar a esse diagnóstico, é preciso ter atenção com o próprio corpo, manter os exames em dia e saber que câncer é algo que acontece, tem tratamento e tem cura. Na vida e no câncer, eu fecho com a máxima de uma das minhas autoras favoritas, Audre Lorde, que também teve câncer de mama: “Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você”.

E é por isso que a cada outubro, quando as marcas colorem seus avatares nas redes sociais de rosa – por oportunismo ou consciência social -, eu escolho não calar a boca, e chamar mais uma vez o que me aconteceu pelo nome que tem: câncer.

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