Por Átila da Rold Roesler, juiz do Trabalho, Justificando –
O ano que passou foi o ano da porrada. Literalmente. Bateram em nossos professores[1], bateram em nossas crianças[2], bateram nos manifestantes[3], bateram nos trabalhadores[4], bateram em jornalistas[5], bateram até em deputado[6]. Ao mesmo tempo, prendeu-se mais do que nunca, os presídios aumentaram a superpopulação carcerária e o Brasil consolida-se como terceiro país do mundo que mais aprisiona pessoas[7]. Parece que estamos em guerra. Aliás, prendeu-se tanto que até um palhaço foi preso durante uma apresentação teatral no interior do Paraná[8]. Um palhaço. Contando piadas. Por outro lado, como explicar que a criminalidade aumentou significativamente nesses últimos anos?[9] O sistema de segurança pública institucionalizado pelo artigo 144 da Constituição Federal alimenta um círculo vicioso. Círculo de truculência, de mortes, de prisões desnecessárias e, também, do constante aumento da criminalidade. Eis a questão: não há guerra nenhuma. Estamos prendendo irmãos, jogando-os nas cadeias e formando criminosos. Esse é o ponto sobre o qual precisamos conversar.
Durante todo o ano, a polícia militar deu demonstrações incontestáveis de que é uma instituição voltada para a guerra, para proteger o Estado, preservar o sistema, muito longe do ideal democrático surgido em 1988. Lembro-me que Roberto Tardelli apelou aos policiais militares para que desafiassem as ordens ilegais e estapafúrdias. Que desobeçam![10] Não foi ouvido. A polícia militar, enquanto força de reserva do exército e que se apresenta como espelho das forças armadas não distingue entre cidadãos-manifestantes, estudantes secundaristas, trabalhadores defendendo seus direitos, jornalistas e os assim encarados “inimigos do Estado”. Estou generalizando? Exagerando? Talvez. Mas as imagens que marcaram 2015 me fizeram acreditar nisso. E não são poucas. São imagens fortes e que repercutiram por todo o mundo[11].
Vivemos em um regime democrático reestabelecido desde 1988 que tem como valores fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No atual Estado Democrático de Direito, a função da polícia é prestar serviços aos cidadãos e não enfrentar “inimigos”. Nesse contexto, não há sequer uma única razão para suportarmos a existência de uma polícia ainda militar. No Brasil, temos um sistema de segurança pública falho, militarizado e incompetente. Em maio de 2012, a Dinamarca chegou a recomendar, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que o Brasil extinguisse a Polícia Militar[12]. Como afirma Luiz Eduardo Soares: “a missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias, vale reiterar, é prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da Lei, ou seja, protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais transgressões que os violem”[13]. Não é o que acontece. O que se vê atualmente é um atuação violenta, reativa e tardia da polícia militar, com prisões em flagrante de crimes menos violentos, especialmente entre as classes menos favorecidas, sem o completo enfrentamento da questão social e o despreparo para lidar com a questão das drogas, por exemplo. Tratar problemas sociais como se fossem problemas de polícia não é a solução.
Todo o sistema de segurança pública precisa ser revisto urgentemente. Desmilitarizar e unificar as polícias estaduais aumentaria a coordenação e eficiência na solução de crimes. A divisão das polícias civil e militar somente gera conflitos e disputa por recursos públicos do orçamento destinado à segurança pública. Divisão de unidades, viaturas, armamentos, recursos humanos, delegacias, batalhões etc, enfim, nada é compartilhado e tudo é dividido. A propósito, Dalmo Dallari já escreveu: “No Brasil, há muita polícia e pouco policiamento”[14]. A polícia que previne não é a mesma que investiga. O ciclo é incompleto. Não compartilham informações. Competem entre si. É irracional. Sei disso. Já passei pela experiência. É necessário uma profunda reforma no sistema policial brasileiro que é falho, incompetente e anacrônico.
De fato, precisamos conversar mais sobre polícia. O esforço de Luiz Eduardo Soares para chamar a atenção sobre esse assunto vem de longa data[15]. A PEC 51, proposta pelo Senador Lindbergh Farias (PT-RJ) altera radicalmente o sistema de segurança pública brasileiro. É importante que todo órgão policial realize o ciclo completo responsabilizando-se cumulativamente pelas tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de persecução criminal. Valorizar o trabalhador policial enquanto servidor público no sentido de servir ao público. O projeto apresenta também, entre outros aspectos, a necessidade de uma ouvidoria externa bem-estruturada, independente e com autonomia orçamentária. E mais: necessitamos urgentemente de uma solução para as guardas municipais para efetivamente integrá-las ao sistema de segurança pública. Hoje, as guardas civis mais parecem um “estranho no ninho” e de constitucionalidade duvidosa, pois não seguem uma política nacional sistêmica e integrada, sob diretrizes claras[16]. Em termos de segurança pública, soluções paliativas não resolvem mais.
Tudo isso precisa ser discutido.
Átila da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós graduado (lato sensu) em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Autor de artigos jurídicos em publicações especializadas. Professor na pós-graduação na UNIVATES em Lajeado/RS e na FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.