Precisamos, também para amizades, exercer pontos finais

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Sempre sofro, fico questionando por dias o que fiz, onde errei para aquela pessoa que amava tanto ter se afastado

Por Prosa Preta, compartilhado de Projeto Colabora




A gente não costuma encarar a amizade como relação amorosa. A amizade está num outro lugar onde simplesmente ignoramos que também há atravessamentos tão profundos quanto de uma relação como namoro ou casamento. Às vezes até mais. Você vivencia momentos tão intensos com aquela pessoa e laços tão profundos que se estendem no tempo para muito mais do que relações românticas. A gente só esquece de que nessas relações também não há garantia de felizes para sempre.

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Muitas são as razões para que uma amizade acabe: a distância, o tempo, a disponibilidade. Diferentes são as razões e também diferentes as formas de superar o fim de uma amizade que, assim como acontece com os casais, parte seu coração e exige recomeçar.

Já estive em muitas relações de amizade que mudaram, amigas que antes eram próximas e que hoje tenho relações meramente protocolares; amigas a quem eu mal dizia oi e que hoje se estiram gostosamente no sofá da minha sala; amigos que têm a chave da minha casa e entram e saem quando querem; também tenho amigas com quem posso ficar meses sem falar, mas que quando encontro tenho o conforto de não ter estado longe um dia sequer.

Estou sempre preparada para ver uma amizade mudar. Mas jamais estou preparada para acabar uma amizade. Sempre sofro, fico questionando por dias o que fiz, onde errei para aquela pessoa que amava tanto ter se afastado. Eu mesma nunca fui a figura ativa num término de amizade, mas já passei por três que me marcaram de formas completamente diferentes e me fizeram crescer – ainda que a custo de muita dor.

Particularmente não acho que seja uma amiga que demande muita manutenção. Não exijo lá grandes tempos de amigas e amigos, tampouco insisto com mensagens ou ligações. Considero que consigo respeitar o tempo e o espaço das minhas amigas, sou boa ouvinte e às vezes deixo de compartilhar coisas da minha vida para ouvir o que está acontecendo com as pessoas que amo. E aí talvez comecem os primeiros erros. Perceber que você nunca demandou muito espaço na vida do outro e ainda assim sua presença deixou de ser desejada é algo doloroso, mas que necessita reflexão e autoanálise. Os três términos que vivenciei exigiram isso de mim de formas diferentes.

"Agora estou aprendendo que às vezes precisamos, também para amizades, exercer pontos finais que exigem deletar mensagem e memórias, apagar contatos, desfazer laços, sair de casa, fazer novos amigos". Foto Clay Banks/Unsplash
“Agora estou aprendendo que às vezes precisamos, também para amizades, exercer pontos finais que exigem deletar mensagem e memórias, apagar contatos, desfazer laços, sair de casa, fazer novos amigos”. Foto Clay Banks/Unsplash

Na primeira vez em que uma amizade minha terminou, me vi atravessada por uma veracidade e uma sinceridade tão aprofundada que parecia que tinham enfiado um cateter na minha veia e colocado um remédio ardido que doía enquanto se espalhava pelo meu corpo sem que pudesse expressar nada do que estava sentindo. Ouvi meu amigo dizer que não tinha mais condições de ser meu amigo, sentado na minha frente, e enquanto processava essa mensagem ia tentando – e falhando – não deixar nenhuma lágrima rolar. Enquanto silenciosamente minhas lágrimas iam correndo no rosto, ouvia critério por critério das razões que levaram uma amizade de quase dez anos ao fim. Critérios com os quais não concordava mas pouco importava naquele momento. O que importava para aquele que acabava de se tornar meu ex-amigo depois de uma amizade que teve das viagens mais malucas aos cuidados mais intensos, as horas de conversa no frio e um fascínio pelo fogo que gerava entretenimentos no mínimo perigosos mas extremamente divertidos, era dar fim, de forma lógica e organizada, ao que era um bonito e muito intenso amor. Quase dez anos depois que vi meu amigo se levantar do meu sofá e cruzar a minha sala esse assunto ainda é tópico de terapia. Talvez nunca supere de fato esse final, mas já entendi algumas coisas que foram importantes para que eu pudesse seguir.

O fim de uma amizade parece exigir menos no que diz respeito à superação dos sentimentos envolvidos, porque realmente entendemos a amizade como algo diferente do amor. Quando acaba um namoro, seus amigos te aconselham a sair e conhecer outras pessoas, a esquecer e cicatrizar a dor com sorvete e dramas. Quando acaba uma amizade você simplesmente informa e segue. Ou só segue.

Fiquei anos da minha vida arrastando uma culpa por ter afundado a amizade mais importante que tinha tido na vida e me martirizando com isso, até que depois de anos de terapia entendi que aquela amizade era sustentada em abuso e violência emocional. Uma do tipo que me fazia acreditar que longe dele eu não seria ninguém, outra que se baseava em uma hierarquia silenciosa de uma relação mentor-mentorada que não era explícita mas que historicamente sempre esteve ali. Detalhes desse relacionamento ainda são difíceis de descrever e nem são tão relevantes para o que quero compartilhar com vocês aqui.

O que importa é entender que quando uma amizade acaba dessa forma, onde quem está saindo explica tão detalhadamente o que significa o fim dessa relação, nem sempre esse detalhes dão conta de nos ajudar a superar. Nunca precisei bloquear, silenciar, ocultar nem nada disso. Mas precisei jogar cada risada, cada passeio, cada conversa, cada momento compartilhado para um cantinho no coração como quem guarda numa gaveta cartas de amor antigas e enfia dentro de um armário para olhar só daqui muitos e muitos anos. Ainda assim, ter um término nesse formato me fez entender muito rapidamente que, por mais sentimentalmente destruída que estivesse, não havia mais espaço para mim na vida do meu amigo depois dos conflitos que tivemos. Por isso foi tão fácil não me comunicar.

Mesmo fazendo isso, não é incomum que meu subconsciente visite essas memórias em sonhos que tem pedaços dessas lembranças e de repente me vejo sonhando com uma conversa infindável numa noite fria de agosto com uma churrasqueira acesa apenas para manter quente um ambiente onde se pudesse fumar, conversar e tomar chimarrão ao mesmo tempo. Aliás, será que você ainda fuma? Eu parei, sabia?

Na segunda vez que terminei uma amizade fui tomada pela surpresa. Uma amizade que ninguém jamais poderia imaginar que pudesse ter um fim e que muito diferente do que aconteceu a primeira vez, acabou sem uma conversa que fosse. Simplesmente cada vez mais foram rareando os convites para cafés, almoços, visitas e trocas de livros. Escassas foram ficando as mensagens e de alguma forma entendi que aquela amiga não era mais minha amiga. Tinha algumas desconfianças sobre os motivos, o que dessa vez me deixou menos sofrida em compreender o término, mas também era dolorido o descaso. Especialmente porque nesse caso estavam estabelecidas também relações de ordem religiosa. Porque nesse caso se tratava de uma mulher negra como eu, que tinha sonhos como os meus e que inclusive era do mesmo signo. Uma amizade que me ajudou a ser a escritora que sou hoje, a pesquisadora que sou hoje e que acabou com um silêncio elegante, quebrado anos depois com uma mensagem que enviei compartilhando minha alegria com as conquistas da minha ex-amiga. Muito carinhosamente fui respondida mas não com um convite a um reencontro e sim com um ponto final.

Cada uma seguiu sua vida e apesar das muitas coisas que compartilhamos prevalece a distância. Quem não sabe que fomos amigas jamais desconfiaria que fomos. Uma ex-amiga que hoje é uma completa estranha, alguém comum que sei da existência. Não me causa nada, não me produz nenhuma curiosidade, simplesmente é um capítulo encerrado na minha vida. Parece que estabelecemos um pacto silencioso que assim seria melhor para ambas. E no fim das contas, é.

Na terceira vez que terminei uma amizade, escrevi esse texto. Escrevi esse texto porque perguntei se estava tudo bem e nunca mais recebi resposta. Escrevi porque o silêncio não é do respeito, é do descaso. Escrevi porque não consigo mais restringir os sentimentos que tão constantemente foram apontados como incorretos e que na expectativa de fazer a vida da minha amizade confortável eu mesma fui engolindo para ser o melhor que podia mesmo que isso significasse me mutilar aos poucos, o que acabou fazendo que eu fosse o pior.

Mesmo que meus traços de personalidade mais marcantes fossem constantemente apontados como problemas, o que por si deveria ser suficiente para entender que não estava estabelecida a simetria gostosa e afetuosa de uma amizade. Apesar de eu ter exemplos tão bonitos e tão especiais de como uma amizade funciona, com acolhimento mútuo, com colo e também momentos de crítica que são fundamentais para a amizade ser um espaço onde se possa crescer, ignorei situações que deixavam evidente que não se tratava da construção de uma amizade. Talvez por isso que ela não tenha tido sequer uma mensagem de despedida, pois não há fim ao que nunca existiu.

Sou uma pessoa de sentimentos intensos, característica que faz de mim uma pessoa muito disposta a ser amiga de maneira inabalável. Quando me proponho a ser amiga de alguém me disponho a ser o mais verdadeira que posso, o mais disponível que dá. Ponho meu colo e todas as minhas melhores coisas à disposição, na esperança de ser considerada, pelo menos entre as minhas amizades, como alguém humana, comum, normal. Alguém que não precisa ser uma força da natureza, uma guerreira inabalável ou que terá seu tom de voz corrigido e apontado como defeito a cada momento de vulnerabilidade.

Quando entrego minha amizade para alguém, espero que meu prestígio não seja motivo de escárnio ou de revirar de olhos. Espero ser acolhida e valorizada da mesma forma que valorizo e acolho. Espero poder conversar minimamente antes de dizer adeus.

Agora estou aprendendo que às vezes precisamos, também para amizades, exercer pontos finais que exigem deletar mensagem e memórias, apagar contatos, desfazer laços, sair de casa, fazer novos amigos, mobilizar o afeto todo que não se deixa de sentir de um dia para outro, na elaboração de algo que nos faça compreender, sozinha mesmo, a responsabilidade sobre o resultado das nossas relações.

Abraçar o luto e respeitar a si mesmo é a coisa mais bonita que eu aprendi nesse momento. Talvez aprenda outras mais, mas compreender que mereço ser tratada com o mínimo de empatia e que sou muito mais que meus defeitos tem sido minha tábua de salvação. O caminho para superar o fim de uma amizade que tem por ferramenta um silêncio violento seguido de um sumiço sem fim tem me exigido falar mais comigo, e entender o que há de mais bonito no meu coração para encontrar minha própria voz, meu vigor e a intensidade dos meus sentimentos novamente.

Afinal de contas, eles são meus.

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