A conquista, por Chico Buarque, do Prêmio Camões é o reconhecimento de seu talento literário, mas, mais que isso, da extraordinária personalidade pública que se tornou. É daqueles personagens inesquecíveis, que marcam várias gerações.




A primeira vez que ouvi Chico foi um choque. Já tinha trocado o cavaquinho-bandolim e o piano pelo violão, o melhor amigo de um adolescente. Arriscava alguns arranhões em bossa nova. De repente surge um lírico compondo em cima de acordes quadrados, dizendo-se admirador de Ismael Silva. Antes da coleção de música popular da Abril, lá em Poços de Caldas tínhamos apenas uma vaga ideia de quem fosse Ismael.

Depois da bossa nova, a chamada MPB tinha se enredado em uma complexidade inócua, um subjazz repleto de acordes dissonantes, colocados de forma perdulária para guiar a melodia, um tecnicismo para compensar a perda do foco criador. Os grandes continuavam grandes, Tom Jobim, Carlos Lyra, mas o fogo da criação da bossa nova já se esgotara.

Esse vácuo seria preenchido pela nova geração que surgia, a mais brilhante da história da música popular brasileira, com Baden Powell, Edu Lobo, Caetano e Gil, Geraldo Vandré, pouco depois Milton Nascimento e João Bosco. E brilhando intensamente, a estrela de Chico Buarque.

O que ele fazia com os acordes era extraordinário. Recuperava a música tonal brasileira, as sequências tradicionais, o padrão de harmonia que vigorou até os anos 50, pré-Caymmi, pré-Garoto, um padrão que se julgava esgotado, e trazia de volta com uma capacidade extraordinária de inovação.

E não eram  apenas as letras excepcionais, mas melodias e harmonias que inovavam sem perder as raízes tradicionais.

A primeira música que tirei foi “Olê Olá”. Começava com um dó com 7ª seguindo para a nostalgia de um mi menor. Depois, na segunda parte, “meu pinho toca forte”, pulava para um fá maior e ia em um crescendo, de semitom em semitom, até explodir na solução final. Tudo em cima de acordes “quadrados”!

A partir dali foi uma ligação instantânea do nosso grupo de serenatas com a música de Chico. Cada compacto que saia com duas músicas novas era celebrado e se incorporava imediatamente ao nosso repertório.

Foi a época da “Quem te viu, quem te vê”, “Umas e outras”, os sambas ismaelinos “Juca” e “Rita”, o rancho “Noite dos Mascarados“. Comparado a Noel Rosa, aliás, desde o início Chico declarava-se seguidor do grande Ismael. Desgostei apenas com “Carolina” e “Januária”. Brincávamos que as serenatas começavam com “Olê, Olá”. À medida em que íamos bebendo e ficando sonolentos, passávamos para Lupicínio e, no instante final, para caaaa-ro-lina.

Era uma injustiça, porque minimizávamos a coitada da Carolina em comparação com outras músicas de Chico. Como cada novo lançamento era uma nova surpresa, criamos uma expectativa que algumas músicas não alcançavam. Com o tempo, ela se tornou parte essencial nos repertórios dos seresteiros, mostrando o meu equívoco.

Assim que entrei no jornalismo, na revista Veja, antes do primeiro ano, tive dois desafios envolvendo Chico.

O primeiro – com três meses de jornalismo – foi o de fazer uma crítica do show de Chico na Boate Dobrão, na rua Cubatão. Fui com minha prima Rosa Maria, enchi a cara de Cuba Libre e, quando ouvi “Valsinha”, de Chico e Vinicius de Moraes, estatelei. No dia seguinte, comecei a escrever a crítica e fiquei em dúvida: Valsinha era das músicas mais bonitas que já havia ouvido, ou minha sensação foi nublada pelo álcool. Ica, a namorada, não facilitou:

– Quando você bebe, se emociona até com o Wando.

Injustiça com o Wando. Outro dia ouvi umas faixas dele e era um grande cantor.

Acabei apostando no sentimento e reconheci que Valsinha superava até o nível de emoção que eu ficava quando bebia.

O segundo desafio me foi confiado por Tarik de Souza, o grande crítico de música da Veja. José Hamilton Ribeiro, da Realidade, encomendou ao Tárik um especial sobre Chico. E Tárik me pediu um boxe analisando tecnicamente as músicas de Chico.

Para demonstrar a criatividade de Chico dentro da música tradicional, bolei um gráfico para analisar sequências harmônicas. Quando a sequência era tonal, previsível, as cores se alteravam pouco. Quando com acordes complexos, as cores mudavam bastante.

Peguei uma música convencional de Chico e outra de Milton Nascimento. O gráfico do Chico virou um pastel, o de Milton, um arco íris. A rigor, não significava que uma fosse superior a outra. Apenas que o tipo de harmonização era diferente.

Muitos anos depois, em 2002, Edu Lobo me convidou para escrever o texto de abertura do relançamento do Grande Circo Místico. Para tanto, precisava ouvir os dois autores, Edu e Chico, para recolher elementos para a abertura. Quando liguei para Chico, me surpreendi:

– Me lembro daquele gráfico pastel da minha música.

Balbuciei que, depois daquela fase, sua música se sofisticara bastante.

De fato, logo depois Chico se mudaria para o Rio e iniciaria a segunda etapa de sua carreira musical, inaugurada pelo clássico “Construção” e parcerias notáveis com Vinicius, Tom Jobim, Sivuca, Francis Hime e com o gênio das melodias, Cristóvão Bastos.

Dei todas essas voltas porque não dá para falar de Chico, sem falar de suas músicas.

Mas o ponto mais relevante de Chico é sua personalidade. Desde o início, se tornou uma referência de caráter, assim como Antonio Cândido, Barbosa Lima Sobrinho, Raimundo Faoro e poucos outros.

A MPB era um universo particularmente competitivo, sujeito a personalismos, especialmente depois que os festivais tornaram os músicos personalidades nacionais. Nesse ambiente, Chico se tornou uma unanimidade. Não se conhece um gesto mesquinho, um escorregão.

Aliás, só um país musical como o Brasil poderia ostentar essa recriação do mito de Baco e Dionísio, Caetano e Chico, um provocador, debochado, outro introspectivo, personalidades totalmente distintas e, no entanto, ambos gênios líricos da música popular. Caetano procurava o conflito, Chico ficava na dele. Tornou-se unanimidade nacional sem investir um instante sequer no marketing pessoal. Impôs-se pela discrição, caráter, coerência pessoal, sensibilidade. Atravessou a ditadura sem se dobrar. Tornou-se uma das vozes principais da abertura política, sem se deslumbrar. Virou alvo do ódio das bestas das redes sociais, não se intimidou nem recorreu à demagogia.

Com sua música, humanizou os pobres, os negros, as mulheres, os vulneráveis, celebrou a solidariedade, a generosidade, em uma sociedade profundamente marcada pelas chagas da escravidão.

Nesses tempos bicudos, em que o caráter nacional é colocado à prova, tempos de oportunismo e medo, em que as referências são a besta-fera dos Bolsonaros ou a auto louvação dos Luis Roberto “eu sou bom, eu só faço o bem” Barroso, Chico Buarque permanece como figura referencial.

Por isso mesmo, o Prêmio Camões não premiou apenas o escritor talentoso, mas a alma nacional que resiste a esses tempos de barbárie.