Prenderam mais um, mataram mais um, mas, mais uma vez, ninguém se chocou

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Por Winnie Bueno, Justificando/Carta Capital –  

O professor e antropólogo João Costa Vargas talvez tenha sido a pessoa que mais me ensinou coisas em um período de tempo tão curto. Eu tive aula com o Dr.Vargas durante um mês, em um curso promovido pela ONG Criola e a Universidade do Texas. Durante as 4 semanas que passei com ele aprendi coisas que foram muito úteis para compreender o racismo de forma diferente, uma delas, talvez a mais importante, foi o conceito de anti-negritude e a compreensão sobre a transnacionalização do racismo anti-negro. Falo em racismo anti-negro porque o conceito de racismo por si só não dá conta do que eu irei abordar aqui. Em outros textos já mencionei que a conceituação padrão de racismo é insuficiente quando falamos de violência estatal e raça, especialmente nas Américas. O impacto que a negritude tem nos índices de abuso policial, encarceramento e homicídios faz necessário lançar mão de uma ferramenta analítica que centralize que a desumanização e o impedimento à cidadania está diretamente relacionado com raça/cor. E quanto mais longe você estiver do padrão branco, mais desumanizado você será.

Racismo, numa perspectiva ampliada, implica etnia. Latinos podem ser vítimas de racismo, judeus podem ser vítimas de racismo, ciganos podem ser vítimas de racismo, mas a geografia de morte se dá por cor e padrões fenotípicos que estão relacionados com a maior presença de pigmentação. A violência racial, portanto, é anti-negra.

O controle social exercido pelas instituições judiciárias a partir da ação das policiais frente à população negra, especialmente a juventude, revela práticas naturalizadas que estão alicerçadas numa lógica de eliminação e desumanização da negritude. Esse padrão se espalha em outras instituições, como também nos níveis de escolarização, acesso à saúde, precarização do trabalho, enfim, em todas as esferas socioeconômicas. No entanto, focar nessa perspectiva não centraliza de forma significativa a questão racial. Isso porque saúde, trabalho, escola são diretamente ligados com cidadania plena e muito facilmente paralelizados com pobreza. Analisar a sociedade a partir de critérios econômicos tem sido a forma mais eficaz de não encarar de frente os impactos da hierarquização racial no sistema global. Quando tomamos essa opção, ignoramos a força da anti-negritude em termos de sociedade. No caso desse artigo, quero propor uma análise que enfoca em violência, especificamente em dois aspectos: encarceramento e homicídios.

Prenderam mais um, mataram mais um, mas, mais uma vez, ninguém se chocou
Manifestante em protesto anti racista detido em Nova York. Foto: Drew Angerer/ AFP 

A massificação da morte de jovens negros nas Américas, especialmente nos Estados Unidos e no Brasil que são os países enfocados nesse texto, demanda uma análise que aborde a anti-negritude em termos globais. A ausência de instrumentos transnacionais eficazes que organizem os dados demonstram o tamanho da tarefa que organizações não governamentais e movimentos sociais tem tido em resistir e lutar contra a violência racial institucional. Os dados que apresentarei nesse texto ainda não foram suficientemente trabalhados; eles fazem parte de uma pesquisa que tenho desenvolvido em paralelo com meus estudos de pós-graduação. Os números não são exatamente desconhecidos, mas a anuência e o silêncio do Estado sobre eles, no que tange a formulação de estratégias comprometidas para modificar esse quadro falam bastante alto sobre a displicência internacional com as vidas negras.

O movimento Black Lives Matter tem tentado demonstrar que vidas negras importam. Dizer isso significa que atualmente elas não tem importado. Significa dizer que apesar dos tímidos avanços que a negritude internacional teve nos últimos anos, nossas vidas continuam valendo menos. 23 mil jovens negros morrem por ano no Brasil. Os dados sobre a população carcerária brasileira indicam que a mesma é composta por 75% de negros. O encarceramento da população negra aumentou significativamente após a edição da Lei de Drogas. Casos como o de Rafael Braga Vieira não são incomuns e a morte violenta de pessoas negras por agentes policiais não é capaz de gerar protestos que desestabilizem minimamente o poder hegemônico branco. Foi assim com Eduardo de Jesus Ferreira, morto aos 10 anos no Complexo do Alemão em abril de 2015. O caso foi arquivado em 2016 por inépcia da denúncia e ausência de provas. Não me recordo de grandes indignações a respeito desse arquivamento. Por outro lado, as contestáveis provas contra o jovem Rafael Braga foram suficientes para que ele fosse levado duas vezes à prisão e tivesse o pedido de habeas corpus negado. Os casos apresentam uma série de distinções, mas a semelhança gritante serve para ilustrar bastante bem o que discorro aqui: são pessoas negras. Pessoas negras tratadas pela justiça de forma, no mínimo, questionável.

A lógica de tratamento diferenciado por parte das instituições judiciárias é facilmente aproximável mesmo em países com tradições jurídicas distintas. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos pessoas negras são desumanizadas pelo estado a partir da polícia, da violência e do silêncio ignorante das cortes. A lógica do recorte racial das policias norte americanas é semelhante ao padrão do elemento suspeito no Brasil. A norma do “homicídio justificável” norte-americano tem conexões bem próximas dos autos de resistência do sistema brasileiro e a cor dos números que indicam as pessoas atingidas por essas estruturas é a mesma: negra.

Em 2013, 55,7% dos homens que foram abordados pela polícia de Nova Iorque no trânsito eram negros, em contraposição a apenas 10,9% de brancos. E eu já posso antecipar a resposta ao questionamento medíocre que pode (e possivelmente vai) seguir ao final desse texto: e qual é o problema de ser parado pelo polícia? O problema de você ser parado pela polícia nos Estados Unidos quando você é negro é que isso significa que você pode ser assassinado ou preso sem motivo nenhum, a não ser o fato de você se enquadrar no que a polícia pensa que é o biótipo de um criminoso. E esse biótipo não foram as pessoas negras que criaram, esse biótipo se baseia numa ideologia que hierarquiza raças e que conecta pessoas negra à crime e violência desde os tempos da escravização. Essa ideologia foi estabelecida como um alento para as mentes da população branca, porque assim havia uma justificativa para os crimes bárbaros por ela mesma cometida. O problema de ser parado no trânsito no Estados Unidos quando você é negro é que existe uma grande possibilidade, estimada em números, que você pode ser o próximo Rodney King.

Há uma ideia consolidada na mentalidade internacional que os processos de genocídio da população negra são uma frase de efeito. Ou que estão apenas localizados no continente Africano. Negros morrem em condições desumanas apenas na África, a intervenção deve ser feita lá. Esse pensamento está tão bem arraigado e articulado que não é incomum você ver pessoas brancas no Brasil mandando pessoas negras irem para a África quando elas expõe situações do racismo cotidiano nas Américas. Essa lógica também demonstra a mentalidade imperialista que fixou-se na população branca brasileira, ao lado do mito da democracia racial. É mais cômodo acreditar nessas falácias porque elas ocultam não o que significa ser negro, mas o que significa não ser. E a partir do momento que fica demonstrado tudo o que significa não ser negro no Brasil, a branquitude se vê numa situação de desconforto. A imagem positiva e altamente egocêntrica que a branquitude tem sobre si mesma, sobre seus méritos e conquistas esfacela-se quando ela se vê confrontada com a sua própria imagem racializada. É muito mais efetivo colocar todos os problemas relacionados com a hierarquia racial em um continente em que eles não estejam sendo praticados embaixo do seu nariz. Porque é muito mais simples ignorá-los também. Essa é um outro aprendizado que tive com o professor Vargas.

A compreensão de que as possibilidades de cidadania plena para a população negra são inexistentes se manifestam também a partir da violência policial. Quando você tem plena noção que dirigir um carro nas ruas tem contornos abissalmente diferentes quando você é negro e quando você é branco, fica exemplificado o subjugamento racial estratégico que é utilizado pelo estado para manter pessoas negras afastadas do exercício dos seus direitos, e, automaticamente, desumanizadas.

Outro caso que ilustra o que eu estou dizendo, para facilitar a compreensão dos meus leitores não-negros que não vivenciam essas questões no seu cotidiano e podem ter algumas dificuldades de assimilar o que eu estou dizendo – e faço essa ressalva aqui, porque já ouvi isso presencialmente, inclusive, que é muito difícil entender as coisas que falo, como se eu me manifestasse em outro idioma -, é o ocorrido com Karine Fernandes do Santos Santana, uma jovem negra de 26 anos. Karine foi acusada de furto pela vendedora de uma loja. Segundo a vendedora Karina teria furtado um casaco. Porém, o casaco era de Karina. Sim, essa mulher negra foi acusada de furtar uma coisa que era sua. Isso por si só já é suficiente para ilustrar o ponto que estou trabalhando nesse parágrafo, mas aí teríamos só a manifestação do racismo cotidiano das relações inter-raciais. Pessoas brancas comumente atribuem à pessoas negras atos de criminalização, o que também é um aspecto do racismo. Contudo, a história segue. Karina, tendo sido acusada de cometer um crime que não cometeu, dirigiu-se à delegacia para registrar queixa de calúnia e difamação, mas saiu da mesma ameaçada pelos oficiais de ser indiciada pelo crime de furto. Segundo Karina, ela foi coagida a não prestar queixa e, ao não ceder a coação, o delegado a acusou de furto e apreendeu seu casaco para perícia. O casaco que a vendedora disse que Karina furtou e que na verdade era dela. 

Esse tipo de constrangimento racista ao qual pessoas negras estão submetidas nas instituições judiciárias explica os baixos números de denúncias de racismo e injúria racial. Explica a desconfiança da negritude do sistema jurídico. São nas instituições que nos deparamos com a materialização da desumanização e da negação à cidadania. Se, ao buscar um direito que é garantido por todo um conjunto de normas, sou tratada com desvalor e escárnio fica evidente que esse sistema faz questão de deixar bem explícito que o funcionamento eficaz do mesmo não inclui atender pessoas negras como sujeitos. Uma pessoa branca jamais sairia de um registro de boletim de ocorrência com uma ameaça de abertura de inquérito policial por um crime que não cometeu.

A ausência de reflexões aprofundadas sobre o encarceramento em massa da negritude no contexto internacional é bastante preocupante. O caso mais emblemático no Brasil no último período, o qual foi transformado em um símbolo da seletividade do sistema penal e do racismo institucional, é o de Rafael Braga Vieira que todos nós conhecemos bem. O que não é analisado de maneira crítica é a diluição acerca do fator racial que envolve essa prisão. Rafael é o único jovem negro preso indevidamente (e não o uso o termo injusto aqui, porque os mecanismos da justiça possuem estratagemas que possibilitam que Rafael esteja preso dentro de uma aparente legalidade) que tem um nome, uma história e algum tipo de comoção em torno dele. Mas existem milhares de Rafaéis Bragas por aí, inúmeros jovens negros que estão pagando com o preço da sua liberdade a manutenção de uma ideologia racista, que através de estereótipos normatizados em figuras jurídicas como o profilling race norte-americano e o elemento suspeito brasileiro justificam a manutenção de uma lógica de violência estatal que é absolutamente racializada. Pessoas negras são impactadas pelo encarceramento massivo e pelos altos índices de homicídios. Pessoas negras são impactadas pela falta de segurança pública humanizada em bairros periféricos segregados. Pessoas negras são vítimas do racismo estrutural.

A letalidade das ações policiais no território brasileiro não implica em uma agenda decisional que altere esse cenário. São insuficientes os esforços em desafiar essa lógica, basicamente porque ela não cria um sentimento de afetação na população brasileira de conjunto. A triste verdade é que os aliados são escassos e os próprios movimentos negros se veem de mãos atadas diante dos ataques sistemáticos às suas vivências, saberes, liberdades e corpos. A forte campanha de denúncia ao caso Rafael Braga, que se intensificou nos últimos meses em virtude da sentença do tribunal de justiça do Rio de Janeiro que o condenou a 11 anos de prisão, foi respondida através de silêncio e ignorância por parte da justiça. O habeas corpus foi negado, demonstrando que a justiça opera numa completa ausência de racionalidade, o que para mim fica evidente quando nos deparamos com outros casos envolvendo posse de entorpecentes, muitas vezes em quantias bastante significativas e em conjunto com armamentos pesados, mas que são compreendidos como desvio de conduta provocados por alterações psíquicas. Esse tratamento é destinado para pessoas brancas, herdeiros de desembargadores e outros privilegiados cujas vidas, de fato, parecem ser mais importantes do que a vida de pessoas negras.

Winnie de Campos Bueno é Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja (Pelotas/RS). Mestranda em Direito Público pela Unisinos/RS

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