Presta atenção, intolerante!

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No país onde está metade das 50 cidades mais violentas do mundo, novo projeto une ONGs buscando reduzir à metade o número de assassinatos

Manifestantes carregam bandeira brasileira com 50 furos: o número de tiros desferidos por policiais contra um carro onde estavam cinco jovens, no Rio. Foto de  Christophe Simon/AFP

Até 2027, uma Cuiabá inteira – 590 mil pessoas – vai desaparecer assassinada, se o banho de sangue cotidiano do Brasil não sofrer uma guinada radical. O país que abriga metade das 50 cidades mais violentas do mundo naturalizou a prática do homicídio. Tanto que pelo menos 50 milhões de habitantes com mais de 16 anos foram atravessados pela tragédia de ter um parente ou amigo assassinado. A opção pela guerra – alimentada pela superpoderosa indústria de armas – faz do país um dos cantos mais sangrentos da Terra.

Na média de mortes violentas, a América Latina bate o Oriente Médio da Síria e a África das guerras civis intermináveis. Com 8% da população mundial, contabiliza 38% dos homicídios. A cada quatro humanos mortos, um é brasileiro, colombiano ou venezuelano. A mazela se apresenta mais acentuadamente nos três países, além de El Salvador, Honduras, Guatemala e México.




A falsidade do populismo de direita fica escancarada quando se constata que as pessoas não querem mais a solução da guerra

Miguel Lago
Diretor da ONG Nossas

Mais contundentes do que tiro de fuzil, os números (aferidos em pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública) ainda precisam sensibilizar o lado da brutalidade. O sucesso eleitoral de políticos como Jair Bolsonaro e seus filhotes pelo Brasil, cavalgando o mantra bandido-bom-é-bandido-morto, apresenta-se como o principal antagonista do admirável projeto Instinto de Vida. Aliança que reúne dezenas de ONGs latino-americanas, a iniciativa, lançada nesta segunda-feira no Rio, apresenta proposta ambiciosa: reduzir a violência à metade no intervalo de uma década. “O cenário de homicídios da América Latina não tem precedentes – e o Brasil ocupa há décadas o topo do ranking mundial, em números absolutos”, apontou Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, informando que o projeto conta com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre outras entidades multilaterais. “A meta de redução é possível. Algumas cidades brasileiras conseguiram resultados animadoras, como redução de 15% em um ano”.

O enterro de Maria Eduarda Alves da Conceição, assassinada dentro da escola onde estudava, na Pavuna. Foto de Fabio Teixeira/ Anadolu Agency

Miguel Lago, da ONG Nossas, articuladora de redes como o Meu Rio, apresentou outra ferramenta de mobilização, o site #Vivosemnós, que usará a memória como ferramenta da mudança. Um espaço virtual de homenagem às vítimas da violência, “para transformar saudade em mobilização e, assim, lutar por mais respeito à vida”. A página tem versões em português e espanhol, e pretende compartilhar histórias tristes, para que elas não se repitam.

A pesquisa demonstra o desejo de cidadania para todos os territórios, reivindicando paz, controle de armas, apuração dos crimes, e que o Estado deixe de ser agente da violência

Jurema Werneck
Diretora-executiva da Anistia Internacional

No lançamento do Instituto de Vida, Miguel citou outro dado da pesquisa que ajuda a desconstruir a cantilena dos populistas de direita: contundentes 93% dos entrevistados defendem que a polícia deve preservar a vida acima de tudo; 92% concordam que todos têm direitos iguais e merecem ser respeitados pelos agentes da lei; e 78% acreditam que quanto mais armas em circulação, mais mortes vão ocorrer. “Quando se começa a dar voz e espaço de fato às pessoas, fica clara a falta de seriedade e compromisso das propostas falsamente conservadoras”, concluiu Lago. “A falsidade do populismo de direita fica escancarada quando se constata que as pessoas não querem mais a solução da guerra”.

Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional, observou a dimensão ainda minoritária do falatório intolerante. “A maioria dos entrevistados pede soluções diferentes do que pregam os discursos violentos”, argumentou, lembrando que, nos Estados Unidos, Donald Trump acabou eleito com menos votos absolutos do que a democrata Hillary Clinton. “A pesquisa demonstra o desejo de cidadania para todos os territórios, reivindicando paz, controle de armas, apuração dos crimes, e que o Estado deixe de ser agente da violência”.

Para tal, os organizadores da campanha buscam a participação da sociedade e das três esferas de governo – despindo-se do reducionismo da ideia de segurança como atribuição das administrações estaduais. “Há políticas eficazes e, se elas funcionarem, o discurso da intolerância acabará esvaziado”, garantiu Ilona. Algumas delas: policiamento mais inteligente, menos repressivo e mais atento às manchas criminais; integração física e social dos habitantes das regiões mais violentas, com redução da evasão escolar e investimento em reabilitação de presos; promover a regulação responsável de álcool, drogas e armas de fogo; fortalecer a capacidade de investigação, privilegiando a elucidação dos homicídios.

Aqui, reside outro problema grave: a média de identificação dos culpados por assassinatos no Brasil gira em torno de 15%. Daí, a necessidade de melhorar a qualidade do trabalho da Polícia. Mas não só isso. “Vamos buscar o compromisso das autoridades municipais, estaduais e federais, porque o problema precisa ser enfrentado em conjunto”, propôs Ilona.

E, claro, tem de fazer o Ministério da Justiça e o governo Temer se mexerem. “Não há um centavo sequer destinado ao Plano Nacional de Redução de Homicídios”, atacou a presidente do Instituto Igarapé. “Vamos atrás do ministro, para que ele se posicione a favor da redução de homicídios no Brasil”, assegurou ela, antecipando que os comandantes do projeto tentarão um encontro com as autoridades para chamá-las a participar.

Porque, como ensinou Garrincha numa batalha bem mais amena (e bem-sucedida), precisa combinar com os russos – no diálogo ou na pressão.

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