No Brasil, 24% dos detentos trabalham; em Minas, menos de 10% teve acesso a programas de inclusão no mercado de trabalho
Por Leandro Aguiar, compartilhado de A Pública
Quando Yorrana Keyte, 28 anos, saiu da cadeia após três anos presa, viu-se diante de quatro questões fundamentais para quem sai do sistema prisional: “Para onde vou? O que vou fazer? Onde vou morar? O que vou comer?”
Ré primária, Yorrana cumpriu pena por tráfico na Professor Jason, em São Joaquim de Bicas, na Grande Belo Horizonte – a única penitenciária LGBTQIA+ de Minas Gerais. Passou os três anos sem trabalhar: “Lá só temos o mínimo. As vagas de trabalho são poucas, para a maioria não há oportunidade”, conta. Em seu vasto tempo livre, Yorrana planejava como se reerguer quando se visse em liberdade.
Resolveu que correria atrás de dois sonhos antigos: retificar seu nome (Yorrana é uma mulher trans) e abrir seu próprio negócio, uma sex shop. Foram anos “futricando a lei” para entender os trâmites da retificação – que, descobriu, não seria aceita enquanto estivesse presa. A loja foi idealizada em longos diálogos com seu ex-companheiro, que conheceu no presídio. Yorrana preencheu cadernos inteiros calculando o capital inicial necessário, as vendas online e o contato com clientes. Planejar ajudou a evitar um problema comum: “A soltura é tão idealizada que muita gente não pensa no que fazer quando a hora chega. Quando você não planeja, acaba na rua; da rua, acaba nas drogas; das drogas, acaba cometendo outro crime, e daí cai de novo no sistema”, diz Yorrana.
Embora seus parentes a visitassem na prisão, avisaram que não haveria lugar para ela na casa da família. Em 2021, ao ser solta, só rompeu o ciclo vicioso graças a uma mão que lhe foi estendida – e não pelo Estado.
“Mãe de preso”
“Dona Angelita, eu preciso de ajuda”. Angelita Mercês, 44 anos, está acostumada a ouvir essa frase. Ela trabalhou oito anos como agente penitenciária em São Joaquim de Bicas, e a maior parte do tempo passou em “desvio de função”, indo de cela em cela conversar com os presos e fazendo as vezes ora de assistente social, ora de enfermeira, psicóloga e pedagoga. Por conhecer, “nome por nome”, cada um dos apenados, foi convidada em 2019 a integrar o Conselho da Comunidade – órgão fiscalizador que auxilia o juiz de execução penal da comarca.
Yorrana a procurou assim que saiu da penitenciária. Do próprio bolso, Angelita pagou as taxas para a retificação do nome da egressa e lhe ajudou a encontrar um trabalho de meio período. Um ano depois, Yorrana arranjou emprego num pet shop, e com o dinheiro pôde inaugurar o seu sex shop. Agora batalha para pagar, em prestações, a multa processual que lhe foi aplicada quando de sua condenação: R$ 17 mil.
Se dependesse só do Estado, o destino de Yorrana poderia ser outro, reflete Angelita. “A maioria dos presos fica 24 horas dentro da cela, quando a lei determina que todos devem ter acesso ao estudo e trabalho”, diz.
O “conjunto de falhas” que ela percebe na Lei de Execução Penal (LEP), que considera “linda, mas só no papel”, vai desde a comida azeda ao racionamento de água, passando pelas recorrentes agressões físicas e psicológicas por parte dos agentes penitenciários. A soma desses fatores é perversa: “Quem está na prisão tem risco de sair pior do que entrou”.
Em todo o Brasil, apenas 24% dos presos trabalham, mostram dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Em Minas, são 28%, e somente 15% têm acesso a estudo dentro das prisões. Não há um dado exato sobre ressocialização. De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, 46% dos egressos retornam para as prisões após reincidir em delitos – o que não quer dizer que os 54% restantes conseguiram se restabelecer após o cárcere. Exemplos bem-sucedidos de ressocialização, como Yorrana, são exceções que se enquadram num perfil claro: costumam ser réus primários, ter sólida estrutura familiar ou contar com uma mão amiga fora da prisão – no caso de Yorrana, a própria Angelita.
Ajudar presos ou ex-presos, porém, dificilmente fará com que um funcionário do sistema prisional fique popular entre os policiais penais. Em Minas, há um apelido depreciativo para esse servidor ou servidora: “mãe de preso”. “Há rivalidade entre a área de segurança e a área voltada para a ressocialização”, afirma Angelita, que já chegou a ser denunciada por policiais penais. O motivo: ela entrou com um pedido judicial requerendo que um egresso, cadeirante, fosse levado de volta à casa do pai, que aceitou acolhê-lo no Espírito Santo. Ao fim do processo, ela foi inocentada.
“Sensação de derrota”
Com população carcerária em torno de 60 mil pessoas, as unidades prisionais de Minas têm mais de 16 mil agentes de segurança, mas apenas 553 técnicos e analistas trabalham com ressocialização dentro das prisões. Desses, 226 são psicólogas – ou seja, cada uma atende 265 detentos. Renata Nasser, 45 anos, é uma delas.
Ela trabalha no presídio de Machado, no sul de Minas. Antes de passar por uma intervenção judicial no ano passado, a unidade operava com o dobro de sua lotação, que é de 134 vagas. Ela lembra que, pela LEP, todo preso tem de receber atenção de assistentes sociais, mas o presídio não conta com esses profissionais, que têm entre suas atribuições resgatar laços dos detentos com seus familiares. “Quanto maior a rede de apoio do interno, melhor será sua vida pós-cárcere e maior a chance dele não reincidir”, explica Renata. Os que cumprem pena longe de sua terra sofrem também com a falta de notícias da família e raramente recebem visitas.
A consequência da falta de verbas e funcionários é o descumprimento da lei: “Nada voltado para a ressocialização é feito aqui. É triste. A nossa sensação é de derrota”, lamenta Renata.
Entre os funcionários de segurança, impera a ignorância sobre o significado da ressocialização. “Muitos acham que é dar ao preso tudo o que ele quer. Não é: é um direito”, desabafa. Quem, como ela, busca um olhar mais humanizado, recebe de volta a animosidade de muitos policiais penais. De abril a dezembro de 2022, Renata esteve afastada de sua função por motivos psiquiátricos, e entende que as situações de estresse no trabalho foram determinantes para seu adoecimento. Em sua avaliação, os carcereiros não conseguem entender que o que segura a cadeia, ao contrário do que muita gente pensa, não é a força bruta. “Por que os presos não fazem rebeliões sempre? Porque têm coisas a perder: escola, atendimento de saúde, psicólogo. A ressocialização é uma medida de segurança”.
“Questão de segurança”
No presídio onde trabalha o assistente social Kalil Lauar, 36, em Teófilo Otoni, norte de Minas, o Estado tinha sob sua custódia, até março deste ano, 724 pessoas, das quais 97 trabalhavam. Nenhum deles tem acesso a cursos profissionalizantes ou escola. Em seus atendimentos, Kalil escuta sempre a mesma súplica. “Não é força de expressão, os apenados imploram para trabalhar”, conta.
Interessado em alterar essa realidade, ele teve uma ideia: abrir uma oficina de marcenaria e serralheria que, a um só tempo, auxiliaria a prefeitura construindo placas de trânsito e consertando carteiras escolares e capacitaria os presos para exercer um ofício quando saíssem da prisão. Kalil escreveu o projeto, a prefeitura comprou a ideia, uma empresa entrou na parceria e um deputado se dispôs a destinar uma emenda parlamentar para a compra de material e maquinário. Faltava a aprovação da direção do presídio. Os policiais penais até elogiaram a iniciativa, mas, na hora de implementá-la, desconversavam, adiando a decisão para uma reunião futura.
Certo dia, depois de muitos adiamentos e desculpas, o assistente social foi informado de que, “por questão de segurança”, o projeto fora vetado pela direção do presídio. “Entendi que não conseguiria fazer nada ali dentro, porque projetos como esse não são para dar certo”, diz. Para compreender o porquê disso, ingressou no mestrado em Segurança Pública e Cidadania na Universidade do Estado de Minas Gerais. E a impressão empírica sobre a lógica policialesca dominante nos presídios se confirmou. “A ideia punitiva, que ignora quase completamente a perspectiva da ressocialização, é institucionalizada. Está além de qualquer servidor específico”, afirma.
Outro flagrante desrespeito à LEP é a prisão de pessoas em locais distantes de seu núcleo familiar. Kalil estima que, no presídio em que trabalha, metade dos presos são de outras cidades – alguns, inclusive, de outros estados. “O critério de manter a pessoa perto da família não é levado em conta”, diz. Ele critica também a falta de acompanhamento sobre a ressocialização: “O Estado não tem nenhum parâmetro para determinar se alguém se ressocializou ou não”.
Outro lado
Procurada pela Agência Pública, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais discordou dos profissionais ouvidos pela reportagem. Afirmou que a resistência da área de segurança aos projetos voltados para a ressocialização “não é a realidade”, e que, ao contrário, existe “empenho de servidores, havendo vários exemplos de ações de sucesso em prol da ressocialização de presos”.
Sobre a falta de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, a Sejusp informou que o último concurso para essas áreas ocorreu em 2013, e que “não há previsão para novo certame para estes cargos”. Já a área de segurança está com um concurso em andamento, “podendo ser nomeados mais de 3 mil novos policiais penais”.
A secretaria destacou ainda a atuação do Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), que no ano de 2022 auxiliou 4919 pessoas egressas, prestando atendimentos psicossociais e encaminhando-as para o mercado de trabalho. A população carcerária de Minas é de 60 mil pessoas.
O PrEsp, com efeito, foi elogiado por Kalil, Angelita e outros profissionais entrevistados pela Pública, que lamentaram, porém, sua pouca abrangência. Dos 854 municípios mineiros, o programa está presente em 15 cidades, sendo responsável, assim, por atender os egressos oriundos das 172 unidades prisionais do Estado.
O PrEsp trabalha com a adesão voluntária, isto é, os egressos não são encaminhados ao programa após o cumprimento das penas. Cabe a eles a iniciativa de procurar uma das sedes do projeto.
Jéssica Borges, 32, lidera o PrEsp de BH, que conta com uma equipe de oito funcionários. “O que a gente faz é tentar que todas as pessoas egressas do sistema prisional consigam chegar ao programa. Mas a gente tem limite na nossa mobilização, no nosso alcance”, reconhece.
Edição: Fernanda da Escóssia