“Fiquei assustado e perguntei o que estava acontecendo. E elas disseram que aquele era ‘o número da Besta’. Me pediram para colocar ’12 mais 1′ na lousa, em vez de 13. Estava ali no grupo uma aluna que tem sempre respostas atravessadas para os professores. Ela liga para a mãe tresloucada, toda vez que acha que está sendo ‘doutrinada'”
Por Matheus Pichonelli, TAB, compartilhado de Pragamtismo Político
Um professor amigo meu causou escândalo ao anotar, na lousa, o número de uma aluna que havia faltado naquele dia. Enquanto escrevia, ouviu gritos, protestos e acusações lançadas por meninas do sexto ano e demorou a entender a razão. O número da estudante era 13.PUBLICIDADE
“Foi bizarro, uma histeria mesmo”, contou, dias após as eleições. “Tudo começou com um grito fino de criança. Fiquei assustado e perguntei o que estava acontecendo. E elas disseram que aquele era ‘o número da Besta’. Me pediram para colocar ’12 mais 1′ na lousa, em vez de 13. Estava ali no grupo uma aluna que tem sempre respostas atravessadas para os professores. Ela liga para a mãe tresloucada, toda vez que acha que está sendo ‘doutrinada’.”
Naquele colégio de elite de uma pequena e rica cidade do interior de São Paulo, uma colega dele, também professora, foi questionada por que decidiu vestir vermelho para trabalhar naquela semana. Não pela direção ou algum pai de plantão na porta de um quartel, mas por uma criança.
Os dias seguintes ao segundo turno das eleições têm sido marcados por questionamentos, provocações e enfrentamentos. Segundo esse meu amigo, relatos do tipo se avolumam entre os colegas de ofício. “Estamos todos muito cansados.”
No início de novembro, uma aluna resolveu enfeitar a carteira escolar com adesivos em apoio a Jair Bolsonaro (PL) e frases como “minha bandeira jamais será vermelha”.
Meu amigo professor avisou que propaganda política estava proibida em sala de aula — fosse em favor do atual presidente ou em defesa do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como se repetisse o que aprendeu em casa, a estudante retrucou, dizendo que ela tinha liberdade de expressão e não aceitaria ser “censurada”. Disse que a carteira era dela e ponto.
Ela ouviu de volta que não: a carteira era da escola e foi lembrada (novamente) de que não, ali não era lugar para proselitismo político.
Foi então que ele ouviu uma frase que havia tempos não escutava: “Eu pago seu salário e você não pode me impedir”.
Num ato de revolta, o professor pegou o papel de propaganda da mesa e rasgou. O gesto causou um escândalo na escola e mobilizou um grupo de estudantes bolsonaristas a espalhar uma espécie de “fake news de corredor”, segundo a qual o professor “comunista” havia rasgado na frente da sala não uma propaganda de campanha, mas a bandeira do Brasil.
Desde então, ele começou a notar que os integrantes do grupo o vigiam da janela quando está em outra turma.
No corredor, ele agora ouve provocações do tipo: “picanha, olha a picanha, agora vai comer picanha de novo, comunista tem que morrer”, etc.
O jeito é seguir em frente como se não fosse com ele. Dias depois, chegou até o professor a notícia de que a aluna havia acionado os pais, que prometeram processar o docente.
Ao menos nesse caso, a direção ficou do lado de seu funcionário — não sem antes oferecer um puxão de orelha, dizendo que ele deu “munição” ao imbróglio todo.
“Os relatos de outros amigos, de outras escolas, são mais bizarros que amedrontadores. Mas são igualmente preocupantes”, conta ele, desolado.
“Sei de histórias de crianças comprando discurso de ódio, alimentando xenofobia, legitimando o racismo, como no caso do colégio Porto Seguro de Valinhos. Uma amiga professora levou esse caso para a sala de aula porque casava com o tema do livro ‘Pássaro branco’, que estão lendo. E o que ela ouviu dos meninos da sala? Coisas do tipo ‘petista e preto tem que morrer mesmo!’, ‘Nordestino é um atraso para o país’. A professora teve de intervir severamente para que parassem os comentários. Os meninos têm só 14 e 15 anos. É assustador.”
Enquanto os pais elegem ministros do Supremo Tribunal Federal como inimigos e pedem intervenção federal em frente dos quartéis, os filhos, ao que tudo indica, foram escalados para lutar nas fileiras escolares. O “diabo” a ser vencido são os professores.
No começo da semana, ao ser provocado por crianças crescidas em Nova York, o ministro do STF Luís Roberto Barroso decidiu responder na mesma língua: “Perdeu, mané. Não amola”.
A frase não demorou a virar meme. O risco, nessas horas, é perder de vista um perigo real. Em Curitiba (PR), por exemplo, duas estudantes foram hostilizadas por vestirem camisetas vermelhas após as eleições e quase apanharam.
As cenas lembraram um trecho do filme “A Onda”, em que um professor faz um experimento com seus estudantes para provar que a estratégia nazista de mobilização das massas pelo ódio e a ideia de raça superior poderia ser facilmente assimilada nos dias atuais. O experimento provou que estava certo
Na mesma cidade, alunos dos colégios de elite se reuniram no WhatsApp para defender abertamente, entre o deboche e o ódio real, uma ação armada para impedir a posse do presidente que seus pais desprezam.
“Quem vai ser o herói que vai matar o Lula [?]”, escreveu um dos participantes. “A 12 do meu pai chegou sexta-feira kkk”, dizia uma mensagem.
Houve quem defendesse execução de feministas e também quem já pesquisou até preços para comprar metralhadora.
Os rastros de ódio plantados pelo bolsonarismo em corações e mentes pintadas de verde e amarelo são hoje o grande legado deixado por quem assumidamente trocou os livros pelas armas.
Pelo exemplo dos pais, este legado ainda está longe de ser tirado de cena.