Por Débora Pinto, compartilhado de Mongabay –
- Desde 2017, o projeto Amazônia 2.0 usa novas tecnologias da informação para fortalecer o monitoramento e a conservação de territórios indígenas e de comunidades tradicionais em seis países do bioma amazônico.
- Infrações e anormalidades são monitoradas in loco pela própria comunidade, que depois envia os dados para alimentar uma plataforma virtual, o GeoVisor, com o máximo possível de agilidade.
- No Brasil, o projeto está presente desde 2019 em três unidades de conservação do Acre, onde 16 monitores indígenas dispõem de um aplicativo de celular para reportar ameaças à floresta.
- No Peru, o Amazônia 2.0 já tem reconhecimento do Estado, sendo considerado um modelo de gestão e governança de florestas e terras indígenas.
Os povos indígenas e populações tradicionais são os maiores guardiões das florestas na América Latina e no Caribe. É o que afirma categoricamente o relatório divulgado em março pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Esses habitantes, não raro, são os primeiros a avistar madeireiros, garimpeiros, grileiros, narcotraficantes e outros entes danosos em seus avanços sobre a floresta. Com seu conhecimento podem, ainda, perceber as alterações ambientais que indicam desequilíbrios, como os causados pelas mudanças climáticas. Para potencializar e valorizar a ação dessas populações, o mesmo relatório sugere transformá-la em tecnologia social.
Desde 2017, o projeto Amazônia 2.0, iniciativa implementada pela IUCN (União internacional pela Conservação da Natureza) com recursos da União Europeia, segue essa trilha. Contando com o uso das novas tecnologias da informação, o projeto atua no fortalecimento dos modelos de governança florestal em territórios indígenas e comunitários em seis países do bioma amazônico: Equador, Peru, Colômbia, Guiana, Suriname e, desde 2019, o Brasil. Lançar olhar sobre o projeto, que tem seu encerramento previsto para o segundo semestre de 2021, traz vislumbres acerca de como esses guardiões podem estabelecer uma visão mais consciente de seu papel – com o incremento das trocas entre diferentes realidades amazônicas.
“O projeto respeita a autonomia das populações tradicionais e indígenas e sua autodeterminação; assim, facilita e oferece assistência em coordenação conjunta com suas organizações representativas com o intuito de salvaguardar os territórios, fortalecer a governança e melhorar o seus meios de vida”, explica o peruano Braulio Buendía, coordenador regional do Amazônia 2.0. “Nós não temos atribuição para impor nada, mas nos somamos às lutas pelos direitos nas regiões amazônicas onde o projeto intervém”. De fato, a cada território cabe uma luta diferente, e elas podem variar do corte ilegal de madeira, no Peru, à ameaça de líderes comunitários por parte de narcotraficantes na Colômbia, passando pelo desrespeito ambiental da indústria petroleira no Equador.
Na prática, em cada território contemplado pelo projeto são realizadas mobilizações e escolhidos monitores entre lideranças já reconhecidas. Estes participam de capacitações tanto para a monitoria em campo quanto sobre a importância do fortalecimento da mobilização e organização comunitária. Essa é a base para o uso de novas tecnologias da informação, que embora variem em cada região, têm o objetivo comum de indicar anormalidades e infrações com o máximo possível de agilidade, alimentando uma plataforma virtual, o GeoVisor.
Dados e informações também são processados pelos coordenadores do projeto, que, a depender do caso, facilitam o diálogo com o poder público na busca por soluções. “Tudo a partir de uma lógica de baixo para cima”, salienta Buendía. São realizados também encontros (agora apenas virtuais) entre coordenadores e monitores das diferentes Amazônias, para que compartilhem suas lutas e conquistas, além do suporte para o desenvolvimento econômico dessas comunidades a partir, por exemplo, dos alimentos resultantes do extrativismo.
No Acre, monitoramento é fortalecido na fronteira
Na Amazônia brasileira foram contemplados três territórios no estado do Acre: as terras indígenas Mamoadate e Alto Rio Purus e o Parque Estadual Chandless. “Essas áreas são próximas da fronteira com a Bolívia e Peru, o que respeita o aspecto de integração regional do projeto”, explica Carolle Alarcon, coordenadora do Amazônia 2.0 no Brasil. Embora as articulações para a realização tenham se iniciado em 2019, era 2020 o ano previsto para a sua execução em campo junto aos indígenas e ribeirinhos, processo interrompido pela pandemia de covid-19. “Foi bastante frustrante porque nos preparamos para estar com eles nos territórios. Então demos continuidade mesmo à distância, mantendo contato com os monitores e com a comunidade, consolidando informações e seguindo em parceria com o poder público local”, completa Alarcon.
Naides Peres foi um dos agentes locais escolhidos pelo Amazônia 2.0, tendo chegado a participar de reuniões de treinamento. Além da vontade de integrar efetivamente uma iniciativa que abarca diferentes territórios amazônicos, Peres aponta outro aspecto da importância local do projeto: a geração de renda. “Eu agora faço parte do Monitora, então saio de casa todos os dias bem de manhã e volto no comecinho da tarde fazendo esse trabalho de monitorar e aprender sobre a natureza, atento para perceber se acontece algum tipo de mudança”, conta.
O Monitora ao qual Peres se refere é o programa de monitoramento de territórios que segue protocolos do ICMBio (Instituto Chico Mendes para a Biodiversidade), e que, no Acre, é operacionalizado pela Sema (Secretaria de Estado do Meio Ambiente), no Parque Estadual Chandless. Diante das dificuldades enfrentadas pelo Amazônia 2.0, Peres foi integrado ao programa passando a atuar como um guardião florestal remunerado. “É muito importante porque aqui opção para o sustento familiar quase não tem”, completa Peres.
“O Amazônia 2.0 visa inserir o monitoramento de ameaças e pressões ao parque, o que não só complementa o monitoramento da biodiversidade como subsidiará tomadas de decisão de gestão, pois quaisquer ameaças e pressões refletem diretamente na manutenção da biodiversidade”, explica Ricardo Plácido, gestor da Sema-Acre responsável pelo PE Chandless. Segundo o gestor, a remuneração desses agentes é fundamental , na medida em que deixam de realizar suas atividades tradicionais para cumprir o expediente de monitoramento.
Mesmo que o projeto não esteja sendo realizado como esperado, os conhecimentos recebidos pelos monitores permitem, ao menos em parte, a sua influência imediata. E é prevista a doação de telefones celulares para a comunidade, que tem acesso à internet, com o intuito de que exista a apropriação e a experiência de uso do GeoVisor. “Queremos que o conhecimento se replique, que eles cada vez mais percebam o poder que têm para fazer valer os seus direitos”, completa Carolle Alarcon.
Nas terras indígenas Mamoadate e Alto Purus, mais uma vez o Amazônia 2.0 se integra a um programa já existente, a formação de Agentes Agroflorestais Indígenas, implementada pela Comissão Pró-Índio do Acre. Presente em onze terras indígenas entre Bolívia e Peru, conta com jovens de diversas etnias que, além de produzirem uma variedade de mudas exóticas e nativas, trabalham na implantação e manejo de sistemas agroflorestais em suas comunidades realizando, em paralelo, diagnósticos ambientais, identificando problemas de manejo e propondo soluções. Esses agentes também são remunerados e dentre eles foram escolhidos e os monitores para o Amazônia 2.0.
Vale lembrar que uma diferença entre o Brasil e os outros países presentes no projeto é o fato de os indígenas brasileiros não contarem com uma organização representativa única e politicamente estruturada – então, o Estado é responsável pela gestão dos territórios. Por isso, a parceria com instâncias do poder público ganha ainda mais importância.
Enquanto a chegada de internet nas TIs Mamoadate e Alto Rio Purus é aguardada e esperada para breve, as informações são comunicadas pelos monitores diretamente à coordenação através da estrutura de defesa que já existem na área. Assim como no parque Chandless, as capacitações oferecidas permitem a ampliação do manejo e diagnóstico a partir de um aumento de percepção para as pressões e ameaças, além do incentivo à estruturação da mobilização pró direitos. Os monitores do parque Chandless receberão um complemento de renda do projeto por quatro meses, uma forma de favorecer e incentivar esses guardiões.
Ao todo, o Brasil conta com 16 monitores com treinamento básico, além de um aplicativo de celular criado especialmente para permitir o reporte instantâneo de ameaças. Ainda que as três áreas tenham um nível quase nulo de desmatamento – aproximadamente 0,3% –, a ideia é que o projeto prepare agentes e comunidades também para possíveis ameaças futuras, sobretudo as que podem ser trazidas pela construção de estradas previstas na região, que conta também com a presença de indígenas isolados.
Do outro lado da fronteira, vitória contra madeireiros
No Peru, o projeto atua na Reserva Comunal El Sira, na província de Atalaya, em 12 comunidades indígenas Ashaninka da região de Ucayali, área fronteiriça com o Brasil. “Algo que acredito ser importante, inclusive como critério de escolha, é o engajamento das comunidades’, explica Rebeca Dumet, coordenadora peruana do Amazônia 2.0. Diferente do que ocorre no Brasil, onde estima-se que pelo menos 70% da madeira extraída da Amazônia seja de origem ilegal, no Peru a legislação permite que as populações tradicionais realizem o corte madeireiro para seu próprio benefício econômico dentro de limites pré-estabelecidos e de áreas pré-determinadas. Essa é a fonte de renda de 80% das comunidades contempladas pelo projeto em El Sira.
Os monitores do Amazônia 2.0, juntamente com a comunidade, se conscientizaram de um esquema abusivo no qual madeireiros agiam de forma predatória, em alguns casos fazendo-se passar por parceiros comerciais dos comunitários. Quando o poder público local percebia o desmatamento acima do permitido por lei, os habitantes da floresta eram penalizados com multas altíssimas, gerando um ciclo de enfraquecimento da estruturação social, fator que favorece a propagação da ilegalidade.
“Uma das principais vias de ação do Amazônia 2.0 é acompanhar questões apontadas pela comunidade junto ao poder público. As ameaças notificadas se transformam em informações capazes de, se necessário, mobilizar as instituições competentes. É uma ferramenta para que as populações tradicionais tenham voz na defesa de seus territórios e de seu modo de vida”, explica Dumet.
No caso de El Sira, o processo levou à diminuição quase completa das atividades madeireiras predatórias na reserva, a partir da ação do poder público, além da revisão de multas aplicadas sobre os habitantes locais. A vitória resultou do trabalho de repasse mensal das informações sobre as ameaças em relatórios em papel, que foram processados e inseridos pela coordenadoria na plataforma GeoVisor. No Peru, o Amazônia 2.0 já tem reconhecimento do Estado, sendo considerado um modelo de gestão e governança de florestas e terras indígenas.
Foram ainda mapeados grupos que já realizam o seu trabalho na região fronteiriça entre Brasil e Peru, o que resultou em um relatório que conta com a análise de iniciativas colaborativas, como o Grupo de Trabalho de Proteção Transfonteiriça Brasil-Peru, o Comitê de Fronteira Local Iñapari-Assis Brasil e a cooperação entre a Comissão Pró-Índio (CPI-Acre) e a Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), que atuam na proteção de indígenas isolados na fronteira.
Nas conquistas do Amazônia 2.0, figuram 31 observatórios indígenas ou sistemas de monitoramento comunitário, com 57 observadores capacitados e empoderados – que já realizaram mais de 1.800 reportes de monitoramento não apenas sobre a cobertura florestal como também de governança florestal e monitoramento ambiental. O impacto mais profundo, porém, está na conscientização dessas populações e na reunião de diferentes necessidades, línguas e desafios territoriais. Um caminho para que os guardiões das florestas na América Latina façam valer os seus direitos e sejam reconhecidos pelo serviço que prestam ao planeta ao se manterem na floresta e, com ela, praticarem o seu modo de vida.
Imagem do banner: Indígenas Ashaninka na região do Rio Madre de Dios, no Peru, uma das comunidades participantes do projeto Amazônia 2.0.
Correção: Na versão anterior desta reportagem, publicamos que o coordenador Braulio Buendía era equatoriano; ele é na verdade peruano. O nome correto de uma das terras indígenas citadas é Alto Rio Purus, e não Alto Purus, como havíamos escrito. E apenas os monitores do parque Chandless receberão um complemento de renda do projeto, e não os monitores das três áreas, como havia sido previamente publicado.