Projeto que libera pagamento de PMs por condomínios é nova ‘aberração’ na segurança pública do RJ?

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Estado, que possui déficit de quase 25 mil policiais militares e um dos problemas mais graves na área da segurança pública, discute na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) projeto de lei que permite a contratação dos agentes para atuação privada em condomínios. Para especialista, medida é uma “aberração”.

Por Lucas Morais, compartilhado de Sputnik




Policiais militares do Rio de Janeiro distribuem folhetos de campanha para coibir a violência contra a mulher no estado fluminense, em 20 de abril de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 25.04.2024

© Ernesto Carriço/Governo do Rio de Janeiro

Só no mês de março, dados do Instituto Fogo Cruzado revelaram que a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde vivem 75% da população do estado, registrou quase 240 tiroteios e 53 mortes. Em meio aos sucessivos episódios de violência que escancaram uma crise de décadas na segurança pública e estampam quase diariamente as manchetes nacionais, a ALERJ aprovou em primeiro turno no início do mês o projeto de lei de autoria do deputado estadual Fabio Silva (União) que autoriza a contratação de policiais militares que atuam na operação Segurança Presente por condomínios e residências, além de associações comerciais ou de moradores. O texto, que ainda precisa ser discutido em segundo turno, está na Casa desde 2016.

“O objetivo é estender a outras áreas do estado a exitosa operação Segurança Presente e possibilitar que associações de moradores e comerciais possam vir a arcar, dentro dos seus interesses, com a presença ostensiva de agentes de segurança”, declarou o deputado durante a votação.

operação Segurança Presente foi criada em janeiro de 2014, ano da realização da Copa do Mundo no país, pelo então governador, Sérgio Cabral, por conta do aumento da criminalidade na Lapa, região boêmia da capital fluminense.

Conforme o governo estadual, o sucesso do programa levou à expansão para outros bairros do Rio de Janeiro no ano seguinte, e atualmente está em 32 municípios do estado. São os agentes do Segurança Presente os citados pela proposta em discussão na ALERJ.

O professor José Ricardo Bandeira, que é comentarista de segurança pública e presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina (Inscrim), defendeu à Sputnik Brasil que é “inadmissível imaginar o poder público prestar serviços de segurança privada”.

“Esse projeto de lei é mais uma das muitas aberrações que acontecem na segurança pública do Rio de Janeiro e um erro gravíssimo. Primeiro porque sequer temos contingente de policiais necessários para realizar a prestação do serviço de segurança pública. Precisamos de mais policiais na rua, nas delegacias especializadas e nos batalhões para melhorar o serviço. E como que poderíamos fazer isso se vamos dividir o nosso contingente para que ele também possa prestar serviços de segurança privada?”, questiona o especialista.

Apesar de o estatuto dos policiais militares do país proibir a atuação dos agentes na segurança privada, os casos no estado do Rio são tão comuns que em janeiro a Polícia Federal (PF) chegou a fechar a empresa de um subtenente da corporação que oferecia segurança privada a moradores do Jardim Botânico, um bairro nobre da capital. O negócio oferecia 24 horas de vigilância com quatro seguranças a cada turno e as cobranças giravam em torno de R$ 500 para residências e R$ 1.000 para prédios e condomínios.

“A aprovação desse projeto implica, logicamente, em muitas falhas na segurança pública. Isso demonstra que nós não temos um serviço adequado e reflete na segurança privada, que, logicamente, empresários, comerciantes e donos de indústria fazem pressão para que possam ter uma melhor prestação da atividade. Com o projeto, quem tem condições de pagar passa a ter uma segurança pública travestida de privada e quem não tem condições de pagar vai ficar à mercê da violência e da criminalidade”, resume o especialista.

Como está a situação da milícia no Rio de Janeiro?

O professor ainda lembra que o Rio de Janeiro é o único estado do Brasil que convive com o crime organizado que envolve as milícias, o jogo do bicho e o tráfico de drogas “dentro de uma mesma cidade e ocupando regiões geográficas específicas”.

Um estudo realizado em 2022 pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), revelou que quase 19% da área urbanizada da Região Metropolitana é controlada por grupos armados, sejam milicianos ou traficantes. Em todo o estado, o índice é de 10%. Só o Comando Vermelho, uma das maiores facções criminosas do país, domina em uma região onde vivem 2 milhões de pessoas.

Além disso, em 16 anos o crescimento territorial da atuação dos milicianos foi de quase 390%, principalmente na Zona Oeste do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense. E uma nova configuração dos grupos armados tem levado ainda mais violência ao estado neste ano: uma ofensiva do Comando Vermelho para retomar territórios que estavam perdidos para as milícias. “E esse projeto em nada vai colaborar para a diminuição dos índices de violência e para melhorar a situação da segurança pública”, acrescenta o especialista.

Qual a diferença entre milícia e facção?

Enquanto as milícias são formadas por agentes que atuam ou atuaram nas forças de segurança, como as polícias civil e militar, as facções criminosas possuem ligação intrínseca com o tráfico de drogas e os presídios brasileiros, apesar da existência desse crime também entre os outros grupos armados. A pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ludmila Ribeiro ressalta à Sputnik Brasil que a legislação discutida na ALERJ busca regularizar “o bico que sempre aconteceu de maneira ilegal e irregular por policiais que buscam melhores salários”.

“Não há constitucionalidade nesse projeto, inclusive do ponto de vista de como se pensa o serviço público. O serviço público é pensado, em sua grande maioria, como atividades de dedicação exclusiva, e especialmente no caso da manutenção da segurança pública, estamos falando das carreiras que estão ali descritas no artigo 144 — o pressuposto é de que essas atividades devem ser realizadas de forma totalmente exclusiva, porque você está falando de profissionais que têm direito ao porte de arma para o exercício das suas funções”, pontua.

Para a especialista, a aprovação da proposta levará a uma privatização da segurança pública. “Então, ao contrário de tentar pensar medidas para evitar que o bico aconteça, para efetivamente fazer cumprir a lei da dedicação exclusiva desses funcionários ao serviço público, o que essa legislação faz é inverter, é dizer ‘Não, tudo bem ser um policial e também ser um segurança privado’. Criamos um conflito e um conflito inclusive de papéis do ponto de vista do exercício profissional. É mais importante preservar a vida, garantir os interesses de todas as pessoas ou o bom funcionamento do comércio e daquele setor específico?”, enfatiza a especialista.

Outro ponto que Ribeiro critica é que o projeto não incentiva uma boa prestação do serviço para o público em geral. “Cria-se a ideia de que é muito melhor trabalhar com esses agentes privados do que no patrulhamento ostensivo, por exemplo, ou em áreas que são áreas marcadas pelos mais diversos problemas, especialmente de vulnerabilidade social”, diz, ao acrescentar que a autorização do uso de PMs na segurança privada já foi discutida outras vezes no estado fluminense, apesar de não ter avançado.

A especialista também compara a proposta ao surgimento das milícias no Rio de Janeiro. “Na verdade, o que você está fazendo é pagar funcionários para garantir serviços públicos, mas com atuação de maneira privada. E aí fica toda a discussão: por que eu vou fazer um serviço de qualidade público se eu posso ganhar de maneira privada, mas pela execução do mesmo serviço? Esse é o primeiro problema. O segundo problema é que quando você começa a trabalhar muito conectado com alguém, como vai ser o caso dessa ideia, a chance de que essa pessoa comece a olhar muito mais para esses interesses se torna muito maior.”

Ideia pode avançar para outros estados brasileiros?

Para os dois especialistas ouvidos pela reportagem, as chances de o projeto avançar em outros estados brasileiros são pequenas. “Primeiro porque esse projeto talvez seja muito malvisto do ponto de vista inclusive da própria categoria, que quer mais benefícios em termos de salários, de aposentadoria. Então copiar essa proposta significa dizer ‘Olha, a gente vai ganhar agora também uma remuneração privada’, e isso imediatamente inviabiliza todo esse corporativismo em torno de benefícios e remunerações mais diretas por parte do Estado“, defende Ludmila Ribeiro.

Já o professor José Ricardo Bandeira pontua que a segurança pública fluminense tem características muito particulares, que inclusive levaram à proposição de projetos como esse, o que não ganharia adesão em outras partes do país.

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