E assim, sem mais, podemos dizer que os argentinxs fomos convidados a caminhar de costas até chegar ao século passado
Compartilhado de Jornal GGN
Promessa de apartheid argentino em fala de Milei no congresso
por Rodrigo Arreyes
Aqui em Buenos Aires, segundo Javier Milei, acaba de acontecer uma segunda queda do muro de Berlim. Agora, na Mauerfall sudamericana, em vez de Roger Waters, tem barulho de Zelensky, Bolsonaro e Orbán, entre outros ilustres convidados para derribar o muro.
Este show da direita mundial teve a sua esperada fala de olhinhos azuis contra a negrada argentina, mas sem usar os termos do tipo “cabecitas negras”, como fazia amorosamente Evita na década de 1950. Os argentinos não brancos ouvimos bem que, com pretensão de ciências econômicas, quilos de palavras foram gastas para sustentar a ideologia racista que deu início a um potencial apartheid argentino.
As palavras que substituíram o termo “negro” ou “marrom” (“negros de mierda”, gritam os libertários em seus atos políticos) foram uma referência às pessoas que usam o Estado para não trabalhar e que, por conta da sua grande dívida com a branquitude, agora deverão pagar a culpa com a vida, ou morrendo de fome ou tentando enfrentar diretamente o governo que fará o ajuste sobre estes corpos. Um dos objetivos do discurso do Milei foi chamar à guerra contra estes corpos? Sim.
Depois de breves frases supérfluas que o canal de televisão TN apontaria como tomadas das falas do General Roca (presidente argentino racista responsável pela Conquista do Deserto), Milei acendeu a chama dos presentes declarando quem seria a Palestina da sua anunciada política, tão interessada pelas políticas de segurança de Israel. Os inimigos deste projeto são os “villeros” (favelados), os “planeros”, os que comem “choripán” (e participam na política por comida, afirma o mito racista), os que nem sabem na verdade sua origem, aqueles que são desagradáveis nos ambientes de alto padrão, aqueles que estão por fora do circuito dos dólares herdados dos parentes europeus; ou seja, a “negrada” ou “marrons”, que aqui estão identificados como máximos inimigos do desenvolvimento, como durante a implantação do projeto eugênico argentino sob comando de militares como Roca. Os dirigentes kirchneristas, talvez, consigam surfar esta crise, sempre e quando, civilizadamente, não pretendam defender o inimigo. Uma e outra vez, Milei repetiu a ameaça de usar “todo o peso da lei” para esmagá-los. É a vez de botar fogo no inimigo, o que fica claramente decodificado pelo argentino racista no discurso perante o congresso. Nem Menem, nem De la Rua, mas sim Videla, chegou ao poder ―observem, Milei foi eleito― com semelhante nível de ódio nas suas falas, definindo um claro inimigo como foi definido hoje. Mas sem falar em Videla, Milei mencionou que, além do ídolo Roca, quer tirar Sarmiento do túmulo (“o que diria Sarmiento da Argentina de hoje?”) e com ele a ideia das raças inferiores, certo?
E o problema do inimigo é o corpo do inimigo na realidade argentina e, do corpo, irritante, sua voz coletivizada e tudo o que ela representa: um mundo alternativo que reclama um Estado capaz de fazer justiça, abrir as portas que sempre estiveram fechadas para as mesmas pessoas, que ainda por mais querem lugares de representação política e uma maior parte do orçamento do Estado para sanar aos poucos ou da única forma possível todos os males de séculos políticas como as anunciadas por Milei (olha a máquina do tempo!), que agora são parte do espetáculo das redes sociais.
E assim, sem mais, podemos dizer que os argentinxs fomos convidados a caminhar de costas até chegar ao século passado e terminar o que então restou por fazer, de novo, com a maior e mais obscena das violências. Certo argentino, tão formado no racismo, talvez tenha sentido enorme prazer no chamado do “Leão”, símbolo imperial adotado por Javier Milei.
Rodrigo Arreyes nasceu em San Martín, Província de Buenos Aires, Argentina, e morou desde criança no Jaçanã, zona norte de São Paulo. É formado em Letras pela Universidade de Buenos Aires e atualmente pesquisa a obra de Lima Barreto, além de estudar Especialização em Tradução Literária, ambos também pela mesma universidade. Participou da Antologia Outsider I (Editorial Outsider) e em 2012 publicou a nouvelle “Manifestación de todo lo visible” (Editorial Simulcoop). Seu trabalho também se direciona para a área da justiça para as vítimas da ditadura brasileira. Durante o período ditatorial no Brasil (1964-1985), seu tio ‘Quinho’, militante negro, foi perseguido e sequestrado pela ditadura.