Por Eduardo Guimarães, em seu Blog –
A notícia saiu no UOL meio cifrada. Muitos não entenderam o que está acontecendo. E o que está acontecendo é uma perseguição vergonhosa do governo de São Paulo contra cerca de duas dezenas de jovens que participaram no ano passado de protesto contra o golpe que derrubou Dilma Rousseff.
Na tarde de 4 de setembro de 2016, ocorreu, segundo a Folha de São Paulo, a maior manifestação contra o golpe de 31 de agosto daquele ano, que afastou definitivamente a presidente Dilma Rousseff da Presidência da República.
Naquele dia, 26 jovens, entre maiores e menores de idade, foram presos pela PM sem qualquer razão plausível. Presos arbitrariamente, ficaram incomunicáveis por até oito horas, sem poder falar com os pais ou advogados.
O comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo ordenou um tratamento diferente para os jovens. Em vez de serem levados para as delegacias comuns, foram parar no Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), órgão da Polícia Civil que costuma lidar com crimes ligados ao crime organizado, como roubo de cargas, facções criminosas e fraudes financeiras.
“A ordem do comando é levar para o Deic”, disse o soldado Marcelo Adriano Nowacki, da 2ª Companhia do 7º Batalhão da PM, responsável pela prisão de cinco adolescentes no início da manifestação, na avenida Paulista, por volta das 16h30. Outros 21 jovens, sendo três adolescentes, foram presos às 15h, por um outro grupo de policiais militares, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), no Paraíso, zona sul de São Paulo, quando se preparavam para ir ao protesto.
No Deic, os 26 jovens detidos nas duas ações foram autuados por associação criminosa e corrupção de menores, crimes que podem render penas de até 5 anos de prisão. Segundo os policiais, os suspeitos pretendiam cometer ações de vandalismo durante a passeata da Paulista.
Parentes e amigos negaram que os jovens pretendessem cometer violências no protesto. Um deles, o estudante de jornalismo Felipe Ribeiro, 27 anos, nem pretendia ir à manifestação, segundo a mãe dele.
“Meu filho não é uma pessoa interagida com política, não sabe de nada. Nunca foi a uma passeata”, disse Maria Aparecida, 65 anos. Ela conta que Felipe foi ao CCSP fazer uma pesquisa na biblioteca para um trabalho escolar. “Ele foi preso apenas porque estava passando por ali”, disse.
Todos os detidos, inclusive os oito adolescentes, foram mantidos incomunicáveis no Deic durante até oito horas. Nenhum dos advogados que foi até a delegacia, localizada no Carandiru, zona norte, teve acesso aos presos.
O delegado Fabiano Fonseca Barbeiro, da 1ª Delegacia de Investigações Gerais, só permitiu que os pais dos adolescentes entrassem no Deic para ver seus filhos. Falar com eles, contudo, estava proibido. “Não pude conversar com meu filho. Só me deixaram abraçá-lo”, contou Rosana, mãe de um jovem de 17 anos.
Na única vez em que saiu da delegacia para falar com os advogados, ainda no início da noite, o delegado Fabiano afirmou que não permitiria a entrada deles antes de decidir que procedimento iria adotar com os jovens.
“O status deles é ‘detidos para averiguação’. Quando iniciar o procedimento de polícia judiciária, os advogados poderão acompanhar”, afirmou o delegado.
O rumor sobre o caso se espalhou porque se tratavam de pessoas muito jovens e inexperientes, assustadas e que não estavam fazendo nada quando foram detidos.
O Blog da Cidadania conversou com a mãe de um desses jovens, que denunciou que ao menos uma das meninas presas foi obrigada a se despir diante de soldados da PM para “averiguação”.
Demorou para que os advogados e os pais dos maiores de idade tivessem acesso aos jovens presos. Só puderam entrar por volta das 23h40, acompanhando uma comissão formada por três políticos do PT: o ex-senador Eduardo Suplicy, o deputado federal Paulo Teixeira e o vereador Nabil Bonduki.
Para o ouvidor das polícias de São Paulo, Júlio César Fernandes Neves, que também esteve no local, a atitude do delegado de bloquear a entrada dos advogados precisa ser investigada. “Vou denunciar”, disse ele. Para o ouvidor, a polícia fez uso de “muita forçação de barra” para incriminar os jovens. “Existe uma grande possibilidade de a convicção do delegado ser totalmente errada”, afirmou à época.
Após sair do Deic, no meio da madrugada, os políticos tentaram acalmar os pais que aguardavam do lado de fora.
“Seu filho pediu-me que dissesse à senhora que está bem”, disse Suplicy para Rosana, mãe de um adolescente detido no CCSP por estar com uma barra de ferro. “Mas ele não pode estar bem, senador. É um absurdo o que fizeram com ele. Nem mochila meu filho tem”, ela respondeu.
“Seu filho disse que a polícia colocou a barra de ferro ao lado dele. Eu acredito na palavra dele e acho que a polícia foi além da conta”, respondeu Suplicy.
“São jovens presos sem cometer um crime. Não tem uma vítima. As coisas que tinham com eles, como máscaras de gás e lenços, são comuns em qualquer manifestação. Foram vítima de um abuso policial”, afirmou Paulo Teixeira, após sair da delegacia.
“É uma barbaridade e uma arbitrariedade. Os meninos foram ouvidos sem advogado, o que é uma barbaridade grave”, concordou o vereador Bonduki. Para ele, a prisão teve um objetivo político. “É uma ação para intimidar as pessoas a não participarem das manifestações contra o governo”, disse.
Um representante do Conselho Tutelar Santana-Tucuruvi, Guarda Luizinho, foi até o local, mas não conseguiu dizer se os direitos dos adolescentes estavam sendo respeitados ou não.
Após horas intermináveis de terror, os jovens foram libertados.
Os 18 manifestantes adultos foram liberados pela Justiça de São Paulo no dia seguinte, 5 de setembro, após ser indiciados por associação criminosa e corrupção de menores. Os outros oito detidos, menores de idade, foram levados à Vara da Infância e Juventude no Brás, na região central. Mais um outro adulto foi detido após o ato e encaminhado ao 14º DP.
O juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, à época, decidiu soltar os manifestantes porque considerou que a Polícia Militar não reunira provas contra eles.
Na decisão, o juiz diz que a prisão dos indiciados decorreu de “um encontro com policiais militares que realizavam patrulhamento ostensivo-preventivo, e não de uma séria e prévia apuração”. Além disso, o juiz destaca que não há “mínima prova de que todos se conheciam”.
Para o juiz Aguirre Camargo, não há notícia de que qualquer dos averiguados, todos primários e com bons antecedentes, tivessem se envolvido com crime no passado ou tivessem intenção de praticar delito no futuro, isso porque, segundo o magistrado, os manifestantes poderiam simplesmente desistir de comparecer ao ato.
Ainda segundo o juiz, o Brasil, como estado democrático de direito, não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira “prisão para averiguação. Este tempo, felizmente, já passou”, diz a decisão.
Talvez o juiz estivesse enganado…
Quase quatro meses depois, Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou, por associação criminosa e corrupção de menores, os 18 manifestantes daquele protesto contra o golpe que derrubou Dilma Rousseff.
Na denúncia, enviada em 15 de dezembro ao juiz de direito da 3ª Vara Criminal da Capital, o promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza afirmou que os 18 adultos e os três adolescentes detidos no Centro Cultural de São Paulo “associaram-se para a prática de danos qualificados consistentes na destruição, inutilização e deterioração do patrimônio público e privado e lesões corporais em policiais militares”.
Para justificar a denúncia, o promotor aponta o fato de a polícia ter apreendido com os manifestantes frascos com vinagre (“utilizado para minorar os efeitos do gás que a polícia usa para debandar arruaceiros”) e materiais de primeiros socorros (“que seriam utilizados em comparsas que viessem a sofrer lesões no confronto com policiais militares”) e um “disco de metal que seria utilizado como escudo”, além de uma câmera fotográfica, que os suspeitos usariam para “registro de ações criminosas e posterior divulgação em redes sociais e outros meios de veiculação de ideias”.
Esse promotor inventou um tipo novo de crime no qual os criminosos filmam e fotografam suas ações criminosas e divulgam a prova em redes sociais.
Para ler a íntegra da denúncia, clique aqui, aqui, aqui, aqui e aqui
A denúncia do promotor Albuquerque, porém, omitiu a principal controvérsia envolvendo a prisão dos jovens: a presença do capitão do Exército Willian Pina Botelho, que havia se infiltrado entre aqueles jovens usando o nome falso de Balta Nunes, o único cujo rosto aparece na foto abaixo.
Em outubro, o comandante-geral do exército, general Eduardo da Costa Villas Boas, afirmou à Rádio Jovem Pan que “houve uma absoluta interação” do Exército com o governo Geraldo Alckmin (PSDB) no episódio do Centro Cultural de São Paulo.
Dois meses depois, o Exército recuou e, numa resposta dirigida a um ofício do deputado federal Ivan Valente (PSOL), disse que o governo paulista não sabia das ações de Botelho nem teria passado informações à polícia que levaram à prisão dos manifestantes.
Seja como for, a presença de um capitão do Exército no caso, tira a competência do caso do Ministério Público de São Paulo e leva para a esfera federal. Ao menos em tese. Mas o promotor paulista Fernando Albuquerque Soares de Souza quis ficar à frente do caso a qualquer preço e, logo adiante, vamos descobrir por quê.
Segundo reportagem da Rede Brasil Atual do ano passado, não é a primeira vez que o promotor se envolve em polêmica. Foi um dos promotores a assinar manifesto em apoio aos colegas Cássio Conserino, Fernando Henrique de Moraes Araújo e José Carlos Blat, que haviam sido ridicularizados na internet por pedido de prisão do ex-presidente Lula em que trocaram o nome do filósofo Engels por “Hegel”.
Em 2011, diz a RBA que o mesmo promotor fora processado por esmurrar um advogado durante um tribunal do júri. O processo teria chegado ao fim dois anos depois, com Albuquerque aceitando uma transação penal proposta pela Procuradoria Geral de Justiça e oferecendo o pagamento de dois salários mínimos.
Chegamos a 7 de fevereiro de 2017, cinco meses após os fatos supracitados que desencadearam todo esse processo. Nesta data, matéria do portal UOL meio cifrada mostra que os abusos da PM e do Ministério Público de São Paulo geraram uma reação edificante e alentadora de membros do Ministério Público Federal, mas também geraram atuação da Procuradoria paulista no sentido de intimidar quem tenta conter seus abusos.
Segundo a matéria, a investigação da repressão a protestos contra o governo Michel Temer (PMDB) em 2016 provocou um conflito entre o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal.
O MPF se meteu nos abusos do MP-SP. As duas instâncias do MP divergiram em torno da detenção de 21 manifestantes, em 4 setembro, com o suposto apoio de um agente do Exército. A briga, agora, foi parar no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, decidiu investigar abusos cometidos pelas policiais militar e civil ao prender os jovens no Centro Cultural de São Paulo e, também, a conduta do promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza, que denunciou os jovens.
Os autores da investigação federal são os promotores Deborah Duprat, Lisiane Cristina Braecher e Marlon Alberto Weichert. Deborah, atualmente, é a procuradora federal dos Direitos do Cidadão.
Partiu dela a decisão de abrir a investigação de eventuais abusos das forças de segurança na repressão a protestos em São Paulo e no Rio. Ela também determinou que Weichert acompanhasse a audiência de custódia dos manifestantes detidos. Lisiane também acompanhou a audiência.
A entrada do Ministério Público Federal no caso enfureceu o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio, e o corregedor-geral do Ministério Público de São Paulo, Paulo Afonso Garrido de Paula, que, em retaliação, pediram ao corregedor nacional do Ministério Público, Cláudio Henrique Portela do Rego, a abertura de uma investigação disciplinar dos três membros da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
O procurador-geral paulista argumenta que a investigação é de nível estadual e, portanto, os procuradores federais não deveriam ter entrado no caso, e pede ao Conselho Nacional do Ministério Público que imponha sanções a eles, mas o envolvimento de um capitão do Exército no caso eleva naturalmente a investigação para a esfera federal. Ainda assim, a Procuradoria paulista não quer conversa e decidiu intimidar os procuradores federais.
Debora Duprath e seus colegas da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão são da ala progressista do Ministério Público Federal, que, inclusive, resiste ao avanço do conservadorismo truculento (Dallagnol e cia. ltda.) que tenta se apossar da instituição. São eles que estão lutando contra a verdadeira ditadura que vige em São Paulo, onde as instituições oprimem quem ouse contestar os desígnios de Dom Alckmin I, o ditador paulista.
O Blog conseguiu conversar com um membro eminente do Ministério Público Federal – não é nenhuma das pessoas citadas nesta matéria – que explicou, em linhas gerais, o que está acontecendo.
Para simplificar, é o seguinte: há uma eterna disputa entre o Ministério Público Federal e o Estadual de São Paulo por conta do aparelhamento deste pelo PSDB. O procurador-geral de São Paulo atua em consonância com o governo do Estado, que deveria fiscalizar. Por isso todas as falcatruas do PSDB paulista ficam impunes, do que é exemplo máximo o escândalo dos trens, que envolve valores superiores a dez bilhões de reais sem que nenhum político tenha sido incomodado, sobretudo os governadores tucanos sob os quais a roubalheira ocorreu.
Segundo o procurador federal com quem o Blog conversou, o procurador-geral de São Paulo, para proteger Alckmin – que determinou o abuso da PM contra os 26 jovens do Centro Cultural –, denunciou Deborah Duprat e seus colegas do MPF ao Conselho Nacional do Ministério Público, que funciona como uma espécie de corregedoria do Ministério Público do Brasil.
Porém, a relação promíscua entre o Ministério Público de São Paulo e o Ministério Público Federal está virando um escândalo de proporções internacionais. No fim de dezembro último, o jornal espanhol El País, um dos veículos mais respeitados do mundo, fez uma longa reportagem sobre as relações incestuosas entre a Procuradoria Paulista e o PSDB.