Proposta do governo pode finalmente tirar do papel mercado regulado de carbono

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Incorporado em substitutivo da senadora Leila Barros, texto avança em relação a projetos anteriores, dizem especialistas

Por Anna Beatriz AnjosGiovana Girardi, compartilhado de A Pública




Após meses de discussão interna, a proposta negociada pelo governo federal para regular o mercado de carbono no país foi apresentada ao Congresso Nacional. Na avaliação de especialistas ouvidos pela Agência Pública, ela traz avanços em relação a projetos anteriores e pode finalmente tirar do papel um sistema de comércio de emissões supervisionado pelo governo – algo que até hoje não havia sido possível. 

Atualmente o que funciona no país é apenas um mercado voluntário, sem metas nem regras estabelecidas, o que o deixa sujeito a irregularidades, especialmente junto a comunidades tradicionais, e a pouco impacto real em termos de controle de emissões de carbono. 

De acordo com especialistas em negociações climáticas, o mercado regulado é um dos instrumentos pelos quais o país pode distribuir de modo mais eficiente os esforços nacionais em reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e, assim, alcançar seus compromissos de redução de junto ao Acordo de Paris. Também pode ajudar o Brasil a fazer a transição para uma economia de baixo carbono.

A proposta do governo foi encampada pela senadora Leila Barros (PDT-DF), presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA) da Casa, que apresentou na terça-feira (21) um substitutivo ao projeto de lei (PL) 412/2022. O texto original, de autoria do ex-senador Chiquinho Feitosa, e do qual Barros é relatora, é uma das matérias sobre o assunto que tramitam no Legislativo. Há pelo menos dois projetos em discussão na Câmara dos Deputados e outros dois no Senado, acompanhados de propostas apensadas.

O substitutivo proposto por Barros determina a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que funciona com base no sistema de cap and trade, inspirado no mercado europeu. 

Neste modelo, o governo estabelece um teto (cap) de gases de efeito estufa que determinados setores econômicos podem emitir. Esse limite é dividido nas chamadas “Cotas Brasileiras de Emissões” (CBEs). O sistema estabelecerá a quantidade de CBEs com a qual cada empresa contará por um determinado período de tempo – por exemplo, um ano. As empresas, então, podem comercializar (trade) essas CBEs entre si com a intenção de se manter abaixo do teto.

O projeto definiu que setores que emitem mais de 25 mil toneladas de CO2 equivalente por ano serão regulados pelo SBCE, o que abrange sobretudo setores industriais como os da siderurgia, química, alumínio e fertilizantes.

Pelo sistema, as empresas desses setores que emitirem demais e ultrapassarem suas cotas precisarão compensar esse excesso. Uma possibilidade é comprar títulos de outras que tenham emitido menos que seus limites, e, portanto, possuam excedentes de CBEs. 

Em resumo, o mercado de carbono é uma política pública para regular as emissões do setor privado e que age, em termos econômicos, como se fosse um imposto. O limite de emissões seria esse imposto. Para pagá-lo, os atores regulados precisam comprar unidades de outros atores que conseguiram ficar abaixo do seu teto.

Mas eles também podem optar por comprar Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões” (RVEs), que são títulos do SBCE que são emitidos por outros atores que fazem alguma atividade que é reconhecida como redução de emissões. Esses projetos têm de atender a critérios e metodologias credenciadas pelo governo. 

Esses certificados são, na prática, uma espécie de título de isenção de imposto. Da mesma forma que uma pessoa pode abater do imposto de renda uma doação prevista em lei.

Os certificados podem ser gerados a partir de créditos de carbono derivados de projetos externos ao SBCE, do mercado voluntário.

O secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Rodrigo Rollemberg, que participou da construção da proposta do governo, avalia que o substitutivo traz os principais pontos defendidos pelo Executivo. 

O secretário de Economia Verde e Descarbonização do Ministério do Desenvolvimento, Rodrigo Rollemberg, falando em audiência pública sobre o mercado de carbono no Senado em julho
O secretário de Economia Verde e Descarbonização do Ministério do Desenvolvimento, Rodrigo Rollemberg, falando em audiência pública sobre o mercado de carbono no Senado em julho

É o caso, por exemplo, do estabelecimento de um sistema de cap and trade e da definição de quem deve ser submetido à regulação no mercado.

A pasta de Rollemberg foi uma das dez que, capitaneadas pelo Ministério da Fazenda, participaram da elaboração da minuta considerada por Barros na apresentação do substitutivo. O processo ocorre desde o começo do ano. 

Nas últimas semanas, havia uma indefinição sobre como a proposta do governo seria levada ao Congresso: se por meio de um novo projeto de lei ou da incorporação a alguma das matérias em análise no parlamento. Com a iniciativa da senadora, Rollemberg está otimista em relação à rápida tramitação e aprovação da matéria até a 28ª Conferência do Clima da ONU, a COP28, que acontecerá em dezembro nos Emirados Árabes Unidos.

Para ele, a regulação do mercado de carbono “inicia uma janela” para aprovação de uma agenda verde no Congresso Nacional, que inclui a criação de um marco legal para os setores de eólicas offshore e hidrogênio verde, entre outros itens. “Não tem oposição a essa agenda”, argumenta. “[Teremos um] semestre verde, em que o Brasil vai descortinar o futuro verde que temos pela frente”, diz

Especialistas entrevistados pela Pública também avaliaram positivamente o projeto, visto como mais maduro que os demais já apresentados. Segundo Shigueo Watanabe, pesquisador do Instituto Talanoa, think thank de política climática, o maior mérito do governo é ter finalmente articulado esforços para a elaboração de uma proposta que, embora não seja a ideal, “está muito melhor do que tudo que apareceu até agora”.

“Finalmente temos a possibilidade de criar um mercado de carbono [regulado], que é um sinal extremamente positivo para a sociedade brasileira e para o mundo. Tem muitos países que já fizeram essa lição de casa, estamos super atrasados”, pontua. “Agora, o primeiro passo sério foi dado”.

O pesquisador lembra que as discussões sobre a regulação do mercado de carbono se arrastam há anos: “A medida já era prevista na Política Nacional sobre Mudança do Clima, instituída em 2009. Em 2021, entraram alguns projetos de lei no Congresso que ficaram tramitando. Com o início do governo Lula, foi produzida a versão do Executivo, que passou também por vários grupos e ministérios.”

Caroline Prolo, advogada especialista em direito das mudanças climáticas e diretora executiva da LACLIMA, associação de advogados de mudanças climáticas da América Latina, explica que o substitutivo deixa definições importantes sujeitas à regulamentação posterior, como a decisão sobre o órgão gestor do sistema. 

“Mas entendo que isso é necessário, porque algumas decisões dependem de mais insumos técnicos. De qualquer forma, este vai ser um sistema vivo permanentemente revisado e implementado por decretos. Daí a importância de a lei prever uma boa governança capaz de gerir esse sistema com competência e agilidade”, afirma.

Se aprovado conforme apresentado pela senadora Leila Barros, o texto prevê que a regulamentação seja editada até um ano após a lei entrar em vigor. Depois disso, as empresas terão dois anos para se adaptar às regras.

A senadora Leila Barros (PDT-DF), autora do substitutivo que encampou a proposta do governo para a regulação do mercado de carbono
A senadora Leila Barros (PDT-DF), autora do substitutivo que encampou a proposta do governo para a regulação do mercado de carbono

Outro aspecto do texto que os especialistas enxergam como um avanço é a garantia aos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre a comercialização de créditos de carbono gerados em seus territórios. Nos últimos anos, empresas têm sido denunciadas por estabelecer contratos abusivos com esses grupos para projetos do mercado voluntário, sobretudo na Amazônia. 

No ano passado, a Pública revelou um desses casos, em que uma empresa vendia a grandes multinacionais – como Santander, Barilla, Air France e Deloitte – créditos oriundos de duas reservas extrativistas federais na Ilha do Marajó, no Pará.

O substitutivo propõe que seja respeitada a consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, conforme previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Também determina que seja definida regra para a “repartição justa e equitativa e gestão participativa” dos recursos provenientes da venda dos créditos.

“O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e tradicionais à comercialização de crédito de carbono de atividades provindas dos seus territórios e definição de salvaguardas mínimas é um dos pontos positivos do projeto”, afirma Prolo. O projeto estabelece que um futuro regulamento vai determinar as salvaguardas para proteção desses povos em projetos do mercado voluntário e também de créditos que vão ser aceitos dentro do SBCE.

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