Por Daniel Pardo, compartilhado de BBC News –
Polícia e estações de transporte incendiadas. Estradas interrompidas por diversos dias. Escassez de produtos. Um número desconhecido de mortos e desaparecidos. Um estado de incerteza e nervosismo agudo.
A Colômbia viveu muitos momentos delicados ao longo de sua traumática história, mas agora parece estar trilhando um caminho desconhecido em pelo menos três áreas diferentes: o protesto social, a economia e a representação política.
Houve momentos importantes no passado que marcaram a história da Colômbia, como a onda de violência que antecedeu a assinatura da Constituição de 1991 ou os tumultos de 1948 após o assassinato do candidato Jorge Eliécer Gaitán que deram origem a grupos de guerrilha no país.
O desfecho da crise atual é desconhecido e por isso é difícil fazer comparações sobre sua relevância histórica. Será que podemos estar assistindo a um divisor de águas semelhante?
O que parece claro, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, é que a situação atual é inédita. E isso se explica muito porque o processo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em 2016 abriu uma caixa de Pandora de demandas e problemas que antes eram estavam fora do alcance dos colombianos por causa da guerra.
“Tenho 74 anos e digo que nunca vi uma elite política tão incapaz de encontrar soluções”, diz o historiador Carlos Caballero Argáez.
O governo de Iván Duque lançou uma nova mesa de negociações para reduzir as tensões e buscar soluções consensuais. Foi o que fez em novembro de 2019, quando os protestos foram mais pacíficos e pontuais e a situação no país menos grave.
Hoje o presidente enfrenta desafios de todos os lados: em seu partido, nas ruas, nas Forças Armadas, em questões fiscais e na política.
Em exatamente um ano, a Colômbia realizará eleições gerais e presidenciais. E todos os desdobramentos deste momento têm uma relevância eleitoral.
A BBC News Mundo conversou com vários especialistas para tentar entender o que está acontecendo.
Uma greve ampla e sustentada
Um primeiro novo elemento desta crise é o tamanho do protesto social.
“A amplitude e a sustentabilidade [dos protestos] são inéditas”, afirma Mauricio Archila, especialista em movimentos sociais.
Os protestos desta vez atingiram municípios de pequeno e médio porte. Foram convocados por jovens, mas contam com o apoio de idosos e de populações minoritárias. Eles paralisaram a produção, o abastecimento e o transporte em lugares inesperados.
“Esta greve atingiu lugares onde os protestos não aconteciam antes e continuou por vários dias sem parar”, acrescenta Archila.
E conclui: “Sou muito cético em relação às comparações, e não quero entrar no assunto Bogotazo (o protesto de 1948) ou da greve cívica de 1977, mas a verdade é que esta greve produziu uma aliança trabalhador-camponês-indígena que talvez nunca tivesse sido tão equilibrada.”
A Greve Nacional é um movimento heterogêneo cheio de contradições e conflitos internos. Não existe uma liderança clara e há representações de quase todos os setores. O futuro do movimento depende de como essa diversidade vai trabalhar junta.
“Mas o que é evidente é que a força da greve surpreendeu toda a classe política”, diz Daniel Hawkins, pesquisador da Escola Sindical Nacional.
“No meio da terceira e mais forte onda de contágio (da covid) e após a ordem do tribunal de Cundinamarca que proibiu multidões, os políticos não imaginavam que as pessoas iriam para as ruas de forma massiva”, diz Hawkins.
Os protestos já tiveram dois efeitos inesperados em um país onde a mobilização social, que é esporádica e costuma ser rotulada de “subversiva”, raramente teve consequências políticas: a retirada da reforma tributária da pauta e a queda do ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla.
O que é difícil prever é se esse movimento, que parece novo e original, terminará em uma situação que tem precedentes na Colômbia: a de uma violência avassaladora.
Uma economia desestabilizada
A economia colombiana é há décadas a mais estável da América Latina: a que teve menos recessões no século 20, a que não apresentou hiperinflação e a que não deixou de cumprir seus compromissos de dívida em 80 anos.
Mas agora a situação é diferente.
“Poucas vezes — para não dizer nunca — tinha visto o país em uma situação tão difícil como a que vivemos hoje”, escreveu em sua coluna o prestigioso economista e ex-ministro Mauricio Cárdenas.
E Caballero Argáez acrescenta: “A última vez que a responsabilidade fiscal do país foi questionada foi durante a crise da dívida latino-americana (início dos anos 1980), mas naquela ocasião a Colômbia conseguiu refinanciar a dívida e um acordo de monitoramento com o FMI que nos permitiu ser o único país latino-americano que não entrou em recessão nem precisou reestruturar dívidas.”
Hoje os títulos colombianos são classificados como “junk” (“lixo”) nos mercados internacionais, o peso colombiano está atingindo recordes de desvalorização e, pela primeira vez em anos, a capacidade de pagamento e emissão da dívida do país é questionada.
“A Colômbia tem um problema de arrecadação (fiscal) toda vez que há uma crise, porque sua arrecadação em tempos normais sempre foi baixa”, diz a cientista política Mónica Pachón.
“Mas eles sempre puderam resolver isso com reformas tributárias emergenciais e com impostos temporários que conseguiram nos tirar do problema.”
“A diferença agora é que uma reforma nunca gerou tamanha oposição, mesmo sem chegar ao Congresso, e sua retirada nos deixou em uma situação incômoda”, explica Pachón, que é a reitora de Ciência Política da Universidad del Rosario.
Duque disse que sua prioridade é conseguir uma reforma o mais rápido possível para que seja aprovada no Congresso. Os economistas acreditam que se chegará a uma solução que provavelmente terá menor arrecadação de impostos, mas que pelo menos tirará o país da crise.
No entanto, o famoso modelo neoliberal e ortodoxo de estabilidade da Colômbia mostrou rachaduras pela primeira vez em sua história.
Uma política radicalizada
Além de economicamente estável, a Colômbia tem sido um país sem muitos altos e baixos políticos: exceto por um pequeno período na década de 1950, a democracia em seu sentido mais formal — eleições a cada quatro anos e transições de poder sem conflitos — se manteve intacta.
Embora a violência não tenha deixado de ser um problema desde a década de 1950, o bipartidarismo entre liberais e conservadores (que passaram a se alternar no poder por acordo) permitiu que se gerasse a ideia de que as instituições democráticas não corriam perigo.
A Colômbia sempre foi considerada, pelo menos no exterior, como uma democracia estável.
Mas, nesta crise, a classe política não tem conseguido chegar a soluções, apontam analistas. Duque convocou os militares para controlar a situação (embora vários prefeitos critiquem isso). Alguns até cogitam cenários de golpes de Estado e o líder nas pesquisas para as eleições de 2022 é Gustavo Petro, um candidato de esquerda que fez parte da guerrilha.
“A violência dos protestos, que também é seguida em suas redes por pessoas que sequer entendem ou se aprofundam sobre o tema, torna a política mais polarizada e ideológica, com a consequência de que se chegar a soluções fica muito mais difícil”, explica Pachón.
Um dos efeitos do processo de paz de 2016 foi o estatuto da oposição, um mecanismo que dá garantias aos críticos do Executivo, mas também aumenta sua capacidade de dificultar suas iniciativas.
“Você acrescenta a isso o fato de que Duque é um presidente fraco mesmo dentro de seu partido e você tem um terreno fértil para os problemas”, diz Pachón.
Na Colômbia, como em toda a América Latina, sempre houve uma crise de representação política, mas talvez nunca antes a desconfiança da população em relação à classe política tenha sido tão evidente.
“O que estamos vendo é um descontentamento generalizado e talvez irremediável, é quase uma situação pré-revolucionária”, diz Caballero.
As consequências podem ser muitas: desde a renúncia do presidente, sem precedentes na Colômbia desde os anos 1950, até a eleição de um candidato, seja de esquerda ou de direita, que rompa com as até então estáveis instituições democráticas do país.
“Isso se resolve com um candidato que gere confiança entre as diferentes partes da população ao mesmo tempo, inclusive no establishment político”, diz Pachón.
“Mas temo que, agora, estejamos mais longes disso do que nunca.”