Puxando os fios das eleições

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E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, conversa com a gente sobre o seu dia nas eleições, realidade sobre a excelência do Colégio Pedro II, que deveria modelar o ensino público, e reminiscências sobre um professor que marcou a sua vida.

“O fato é que iniciei minha vida adulta votando em 1989. Tinha dezoito anos. Não só votei, como fui convocado para trabalhar nas eleições. E não somente trabalhei nas eleições, como também servi ao exército em 1990. E não só servi ao exército como fui para a universidade estudar Letras em 1992. Se pintei a cara nas passeatas durante o impeachment do Collor? Um bocadito.




Enfim, testemunhei a história da redemocratização do país. Testemunhei o desejo de muitos de votar para presidente. Por isso, para mim, o voto é algo inegociável. Nunca será facultativo. Votarei até quando puder. E tenho dito.

Portanto, para mim um domingo de eleição é um dia curiosamente cheio de expectativas. Quando eu era mais novo, era dia de encontrar velhos amigos e perceber que estávamos a envelhecer. E agora? Mais que isso: em vez de velhos amigos, somos também amigos velhos, a julgar pelas rugas no rosto e pelos cabelos grisalhos que nos pegaram de jeito.

Eu sempre votei no Colégio Pedro II – Engenho Novo. Para quem não é do Rio de Janeiro e não conhece o colégio, digamos que ele é uma das poucas escolas públicas que fogem à regra segundo a qual a educação pública no Brasil é um caso perdido.

“Por mim, por mim, toda escola pública deveria ter uma estrutura à Pedro II”, era o que eu costumava dizer depois de ter assistido a uma fala do professor Gaudêncio Frigotto durante uma defesa de mestrado. Investimento, investimento em pessoal, em instalações, investimento.

Talvez tenha sido por esse afã de pesar diferenças entre a minha realidade e a do Pedro II que eu tenha olhado tanto para cima ao adentrar o prédio principal do “Pêzão Engenho Novo”.

Pude observar uma quantidade enorme de fios passando por minha cabeça. Lá estavam eles, os fios, acondicionados em canaletas. Creio que eles alimentem o sistema de internet da escola, talvez o de refrigeração, talvez muitos sistemas ao mesmo tempo. Como não tinha observado a fiarada passando por sobre a minha cabeça em 2022, creio que isso seja resultado de obra recente.

Será que houve inauguração do “starsystem” com corte de fita vermelha e tudo, mas sem corte de energia? Não sei. Seja como for, o conjunto da obra é um tanto desagrádavel ao olhar. Vê-se nitidamente que as instalações originais do PII não previram obras de aclimatação de salas.

Dito de outro modo, a arquitetura do prédio, com sua ampla entrada que dá para as escadas por onde se acessa os corredores que dão para as salas de aula, está em descompasso com as necessidades da modernidade. Paciência. Se a estética da gambiarra é feia para os meus padrões, pelo menos os alunos e os professores não passam perrengue por causa do calor.

Eu acabei não dizendo que durante o trajeto eu tinha visto um acidente com vítima fatal. Um carro e uma moto. Um corpo coberto por um saco plástico. E uma viatura da polícia. E antes de entrar nas dependências do Pedro II, eu vi outro acidente, menos grave. De novo um motociclista e um carro de passeio. O meu estômago embrulhou. Porra, justamente no dia da festa da democracia?

Eu já tinha me esquecido dos acidentes quando entrei na sala 9 para votar. Eu acabei me lembrando do Ramon, meu professor de linguística da graduação na UERJ. Lembrei-me dos seus grandes olhos azuis, de ele ter nos dito de sua origem hispânica, de que segundo ele os espanhóis expressam os palavrões mais cabeludos do mundo.

Ramon era uma figura. Inteligentíssimo, sarcástico, fumante de Ritz. Certa vez, teve greve dos funcionários na UERJ e a gente perguntou se ele iria dar aula ou não. Ele disse que não, que não ia subir aquela ramparia toda da UERJ porque era “movido a vapor”, isto é, fumante.
Quer dizer, sem elevador, sem aula.

Escrita, a piada não parece ter muita graça, mas lhes garanto que quando ele a contou eu soube que havia alguém diante de mim que sabia rir de si mesmo. Ramon era o professor que durante o café nos dava aulas informais de política.

E ele gostava de café tanto quanto de cigarros. Ele tinha um quê de Roland Barthes de “Mitologias”, conseguia enxergar detalhes na conjuntura política que, sinceramente, nenhum outro professor da época conseguia enxergar, por melhor que fosse.

Foi com grande alegria que encontrei com ele em eleições passadas. Caray, Ramon no Engenho Novo! Que surpresa boa. Eu pude perceber que ele era do tipo que ia votar como quem ia dar aula. Nada de bermudas e camiseta de time de futebol. Ramos vestia camisa de botão por dentro das calças jeans, sapatos de couro do tipo mocassin. Nada de meias.

Dificilmente eu toparia com Ramon nesta eleição de 2024. Quase trinta anos se passaram desde a graduação e ele, sendo a vapor, teria dificuldade em subir as escadas. Aliás, nem sei como ele reagiria a esse mundo virtual (o Pê II não é uma escola acessível, especialmente o prédio principal). Como seria bom, entretanto, ter alguém como ele por perto para analisar do ponto de vista da linguistica as transformações do país.

O carro e a moto ainda estavam no local do acidente. O corpo já tinha sido removido, e ainda atrapalhava o tráfego. Eu morri de saudade do Ramon, que certamente saberia me dizer em espanhol pelo menos um daqueles palavrões cabeludos, cabeludérrimos, tão propícios para situações como a que eu estava experimentando.
“Em 5 minutos echo abajo esse puto edificio”, disse-me uma voz dentro da minha cabeça.
Caray!”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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