Em debate promovido por Outra Saúde e ELA-IA, o pesquisador Wellington Pinheiro dos Santos reflete sobre as possibilidades e perigos da nova ferramenta. E instiga: é hora do Brasil aproveitar nova brecha para construir tecnologias públicas
Por Alessandra Monterastelli, copartilhado de Outras Palavras
Na década de 1940, Alan Turing, matemático britânico, elaborou uma teoria após sua observação sobre uma brincadeira comum nas casas inglesas da época. Uma pessoa ficava de um lado de uma cortina e fazia uma pergunta; do outro lado da cortina, um rapaz e uma moça deveriam elaborar uma resposta, escrevê-la em um pedaço de papel e passá-la debaixo da cortina. A pessoa que fez a pergunta deveria adivinhar de quem era a resposta. Turing, então, disse que chegaríamos à inteligência artificial no dia em que, se atrás da cortina estivessem um rapaz e um computador, a pessoa que recebesse as respostas para a sua pergunta não soubesse diferenciar qual delas foi escrita por um humano e qual por uma máquina.
Com o anúncio do Chat GPT, poderíamos afirmar que chegamos ao nível de inteligência artificial proposto por Turing. Em entrevista ao Outra Saúde e à Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), Wellington Pinheiro dos Santos, professor de Engenharia Biomédica da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Sociedade Brasileira de Inteligência Computacional, afirma que, ainda hoje, nos baseamos em uma tradição antiga sobre tecnologia – que deseja sistemas de comunicação capazes de reproduzir a mente humana, incluindo suas falhas.
No programa em vídeo, ele defende que seria ingênuo pensar que a Inteligência Artificial é neutra. “Quando nós não pagamos pela tecnologia, é porque o produto somos nós”, lembra Pinheiro. Ele cita como exemplo o smartphone, que possui diferentes dispositivos de coleta de dados: câmeras, microfones, sensores e um sistema operacional que não é aberto – isto é, não é possível saber como ocorre o controle do hardware. “Não temos controles sobre esses dispositivos e estamos a todo momento sendo controlados para gerar dados, que vão se tornar soluções para ficarmos cada vez mais presos às redes”, afirma. Além, claro, de gerar cliques para comprar produtos online.
Diante desse cenário, Pinheiro argumenta que a regulamentação de mídias e Big Techs não é censura. “Um pesadelo autoritário é o que estamos vivendo agora: não somos donos dos nossos dados, eles são apropriados e utilizados a favor das empresas”, defende. Segundo ele, seria interessante seguir o exemplo das ciências da saúde, que fazem experimentos envolvendo seres humanos para entender qual a segurança e benefício do que está sendo testado. O mesmo tipo de pesquisa poderia ser aplicada para regular as redes sociais. “Muitos argumentam que isso alteraria algo já liberado. Mas se algo estabelecido causa mal à sociedade, deve ser destruido”, argumenta.
As revoluções industriais ocorreram para “resolver crises” e gerar oportunidade de crescimento. A partir daí, o especialista defende que uma 4º Revolução Industrial poderia reinserir o Brasil em um contexto econômico-industrial mais propício, se o país investir de forma correta em sua entrada nesse processo. Isso exigirá política. Nas décadas de 1960 e 1970, durante a 3º Revolução Industrial, o Brasil tentou impulsionar sua indústria eletrônica e microeletrônica, com o surgimento da Embratel e da Eletrobrás. Nos anos seguintes, a forte adoção de uma política econômica neoliberal acabou por “destruir a indústria nascente”, nas palavras de Wellington. “Não é fácil colocar a tecnologia a serviço da eliminação da pobreza, mas isso passa pela política”, explica o pesquisador, e reforça que atingir esse objetivo só será possível através de um Estado “radicalmente democratico, com a participação da classe trabalhadora e da sociedade civil organizada”.
A Universidade Pública, no contexto da criação de novas tecnologias, poderia servir como uma possível ponte entre o governo e a sociedade. Hoje responsáveis pela maior parte das pesquisas científicas do país, essas instituições apresentam potencial em unir o interesse público e as necessidades de mercado – no sentido da construção de um mercado nacional com soluções brasileiras gestadas de acordo com as necessidades nacionais. “As Health Techs são teoricamente bem intencionadas, mas o seu auge está quando são vendidas para uma BigTech”, critica Pinheiro, referindo-se a falta de um alinhamento da produção de tecnologias com objetivos sociais maiores. Para ele, “nos iludimos com o Vale do Silício”.
Perspectivas para a Saúde
Apesar dos desafios, Wellington aponta que a tecnologia será responsável por grandes avanços na área da saúde pública. Como exemplo ele cita o acompanhamento de idosos, que muitas vezes não podem ter atenção 24h por parte da família ou dos serviços de saúde. Neste caso, a inteligência artificial poderia representar uma importante companhia nos momentos em que outros humanos não podem estar presentes.
O Chat GPT poderia, também, permitir que médicos dedicassem mais de seu tempo ao cuidado, segundo o especialista. O desenvolvimento da tecnologia ao nível de um técnico-especialista poderia dar ao médico mais tempo para examinar – enquanto a máquina faz a leitura e interpretação dos resultados de exames, por exemplo. Em outra entrevista em parceria com a ELA-IA, Giliate Coelho Neto, ex-diretor do DataSUS, afirmou que o sistema público brasileiro hoje vive um complexo problema com o armazenamento de dados de pacientes; a inteligência artificial poderia ser uma resposta promissora também para o armazenamento de dados. “Quanto mais conhecimento tecnológico na mão do médico, mais tempo liberamos ele para outras coisas. E, no caso, o médico é o profissional do cuidado”, afirma Pinheiro.