A rapidez das pautas da “internetlândia” faz com que eu não possa falar sobre uma por vez, por isso decidi refletir sobre as últimas. Primeiramente, cabe refletir sobre a ideia de violência, nosso mundo, hoje. É menos violento do que o mundo medieval ou antigo? Essa palavra se coloca como uma consequência da linguagem produzida pelo indivíduo ao estabelecer diálogo com o mundo. Estudiosos do assunto como Freud e Lacan compreendem a violência como constitutiva de nossa subjetividade e nossa relação com aquilo que nos é externo, transgressor, o mundo ao nosso redor, parte de nossa ordem libidinal. Contudo, essa agressividade tanto pode quanto deve ser sublimada, recalcada, para isso, a palavra é importante como mediação simbólica.
Por Nogueira Netto, compartilhado do Portal Vermelho
llustração: Latuff
Em nossa sociedade, isso talvez explique como um indivíduo muda o perfil comportamental durante uma partida de futebol, seja jogando ou assistindo, ou como tantos jovens se tornaram mais sociáveis e menos violentos na escola após começarem a praticar uma arte marcial. A violência ganha espaços autorizados, isso é bom, pois, não se coloca como uma violência que produz prejuízos a outrem, é bom para a saúde física e mental, é uma violência benéfica.
Assim, compreendemos que há violências autorizadas e não autorizadas na sociedade. Ocorre que nem sempre a violência autorizada é benéfica. Outro autor que nos ajuda a compreender isso é o francês Pierre Bourdieu, que na década de 1970 falava a respeito da violência simbólica. Para pensador, quem a exerce e sofre não a realiza através da violência física, mas no âmbito da linguagem, causando danos bem maiores, morais e psicológicos. Isso ocorria, por exemplo, nas escolas que naturalizavam as diferenças sociais dos alunos e colocavam os filhos de famílias mais abastadas como superiores, como aquele professor que trata um aluno de forma melhor porque é filho de político “x” e outro aluno com desdém porque é filho de “x”. Nesse ínterim, o racismo estrutural também pode ser ou não uma violência simbólica, posto que o sujeito que a pratica não está consciente de tal ação, apesar da negação em aceitar isso como violência revele um certo conhecimento da mesma.
Após realizar essa introdução, vale refletir sobre como, por conveniência, somos defensores de uma civilidade utópica, algo que faz a violência caminhar junto com a hipocrisia, posto que nos comovemos com aquilo que a mídia deseja. Uma guerra na Ucrânia comove, ajuda aos imigrantes da guerra também, mas o mesmo não ocorre quando são imigrantes africanos, também fugindo de conflitos. Aqueles viram muros na Europa serem levantados contra eles. Um artista no carnaval caracterizado como Jesus Cristo causa indignação, mas geralmente é o mesmo público que defende um presidente responsável direto pela morte de mais de 660 mil pessoas durante uma pandemia. É também o mesmo público que aplaudiu a homenagem que um deputado fez ao militar que torturou a da líder estudantil que virou presidente da República. Eis uma violência simbólica sendo operada aos olhos vistos, pois, acreditam defender os ensinamentos de Cristo, aquele que usou um chicote para expulsar os vendilhões do templo. Sim, Cristo chegou a ser violento em um momento de revolta, mas esteve sempre ao lado das minorias, as mesmas que muitos seguidores dele “inexplicavelmente” excluem, seguem mais os fariseus do que Cristo. Os clips de Anitta causam indignação, mas o padre ou pastor pedófilo é defendido geralmente pelas mesmas pessoas que criticam o clip dela. O caso do senhor em situação de rua espancado por um marido supostamente traído (esteja sua esposa com problemas psicológicos ou não) dividiu plateias da arena Instagram, mas a violência que ele praticou ao revelar detalhes (exagerados ou não) não causou revolta, ao contrário, ganhou fãs, patrocinadores, talvez muitos deles critiquem Anitta também. O tapa de Will Smith causou revolta, mas as piadas do humorista que desrespeitaram Jada Smith, não, ao contrário, o ingresso do show dele está mais caro e não sofreu nenhuma punição. Não é a primeira vez que faz isso e foi contratado para isso. Talvez Jesus Cristo tivesse ido além de um tapa e usado um chicote como fez no templo.
Os exemplos parecem infinitos. Todos nós praticamos violência, autorizada ou não. Cabe saber se essa violência está prejudicando alguém, caso esteja, que sublimemos o mais rápido possível. Contudo, se a violência física fosse erradicada do planeta teríamos a erradicação da violência? Não, pois, a defesa de piadas extremamente violentas, causadoras de danos morais e psicológicos é alimentada diariamente por memes, tem audiência da população. Temos um presidente eleito que se destacou através do uso da violência simbólica. Então, lembremos nessas horas que os quilombos não resistiram sem a violência física, a África do Sul não se libertou do Apartheid sem a violência física, a resistência dos estudantes à ditadura militar no Brasil não se deu com ciranda e bumba meu boi, pois tiveram que usar a violência para se defender da violência e lutar para redemocratização do país, tivemos uma presidenta eleita duas vezes que orgulhosamente fez parte desse cenário. Não estou defendendo a violência física, mas compreendendo que há situações nas quais ela infelizmente ainda é necessária, pois, um hematoma desaparece mais rapidamente do que um trauma psicológico e uma degradação moral.