Qual mundo estava em paz?

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Quando o conflito ferve na Europa, volta-se a falar em ameaça à “comunidade” internacional. Ignoram-se as digitais dos EUA em guerras com milhões de mortos e refugiados (não-brancos). Este termômetro hipócrita reflete um colonialismo que perdura

Por Antonio Gomes, compartilhado de Outras Palavras




Frame do filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola

Por Antonio Gomes

Há 30 anos, no alvorecer da década de 1990, acreditou-se em alguns círculos intelectuais que a História havia mesmo acabado, e que talvez tivéssemos alcançado, enfim, a utopia kantiana de uma paz perpétua. Outras leituras, um tanto diferentes, apostavam na dissolução da União Soviética como a última pá de cal no capitalismo, disparando contraditoriamente a crise derradeira de um sistema constituído, essencialmente, de crises. Assim, por vias distintas, criava-se um consenso de que o fim da Guerra Fria marcava a entrada da humanidade em uma nova era.

Três décadas se passaram e, de maneira surpreendente, a Guerra Fria não parece muito disposta a sair de cena como previsto. Nos debates atuais, enquanto alguns percebem que o mundo, infelizmente, pode não mudar tanto assim quanto gostaríamos, outros, legitimamente inconformados, se recusam a pensar a realidade atual em termos tão “ultrapassados”. Com tanto a se discutir, porém, ninguém mais se lembra de questionar a própria terminologia utilizada (ou refutada), e muito menos refletir sobre a relação dela com o presente histórico.

Popularmente, a Guerra Fria foi assim denominada pois, apesar de uma tensão permanente e crescente entre as duas principais potências da época (EUA e URSS), nunca se chegou efetivamente às “vias de fato”, com as provocações e competições tecnológicas sempre se mantendo em temperatura controlada. Tal denominação faria algum sentido caso, como alguns ainda insistem em achar, o mundo se resumisse ao hemisfério Norte – mas pergunte a um angolano, ou a um moçambicano da época, em pleno processo de descolonização, como estava o clima em seus territórios. O período da Guerra Fria foi bastante quente em grande parte do continente africano e em partes da Ásia, mas aparentemente certas violências não importam tanto assim, e nem são tão úteis à narrativa hegemônica. Guerra Fria para quem, afinal de contas?

Voltemos agora a 2022, mais especificamente ao mês de fevereiro. De súbito, a mídia hegemônica ocidental se mostra horrorizada com o desenrolar de uma guerra de grandes proporções em território ucraniano (e, portanto, europeu), abalando de maneira preocupante a segura estabilidade – conforme a sua leitura, claro – na qual o mundo havia entrado nas últimas décadas. Mas qual mundo, exatamente, estava em paz?

Dando rostos às frias (e alarmantes) estatísticas do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)1, o artista chinês Ai Weiwei mostrou, em seu documentário The Human Flow2, lançado em 2017, que esse mundo não andava lá tão estável e pacífico como se supunha. No filme, evidencia-se que, se os países ocidentais andavam desorientados com os fluxos humanos africanos e asiáticos penetrando suas fronteiras, era porque em nenhum momento a guerra deixou de existir nessas regiões violentadas desde o período colonial.

A Somália, por exemplo, lida com conflitos armados contínuos em seu território (cada vez mais desfigurado) há pelo menos 30 anos, com participação direta, bélica e recente dos Estados Unidos, país mais cinicamente preocupado com a paz nas últimas semanas3. Ali ao lado, a Etiópia sofre, desde 2020, com uma guerra violenta, complexa e sem perspectivas de solução a curto prazo, liderada por um presidente que, um ano antes, havia recebido o Nobel da Paz por debelar uma guerra de 20 anos com a Eritreia. Ainda no leste africano, a violência recorrente em Cabo Delgado, província localizada no norte de Moçambique, se estende sem sinal de tréguas desde 2017, em um país que viveu décadas consecutivas de guerra entre os anos 1960 e 1990. Neste último caso, vale apontar que nem mesmo a proximidade linguística e cultural com o Brasil foi capaz de comover a mídia hegemônica da gravidade da situação. Enfim, a lista de conflitos contemporâneos invisibilizados pelo mundo afora é bastante grande, e já vem sendo exposta por alguns veículos midiáticos nas últimas semanas4, então não é necessário repetir uma vez mais os detalhes de cada situação.

O ponto é que, diferentemente da atual situação na Ucrânia, quaisquer outros conflitos deflagrados em territórios não-ocidentais, também com suas vidas e mortes, histórias e afetos, são banalmente naturalizados, e nunca considerados suficientemente preocupantes para a segurança mundial (mesmo quando envolvem grandes extensões territoriais, em áreas distantes do centro do sistema). Afinal, são países que “estão sempre em guerra”, que “não tem solução”, que são inexoravelmente “assolados pelo autoritarismo e pela corrupção”, e que, no final das contas, só são dignos de nota quando aumenta o afluxo de estrangeiros (não-brancos) aos países do hemisfério Norte.

Obviamente não se pretende, aqui, minimizar o sofrimento dos ucranianos nas últimas semanas: ninguém pode(ria) eticamente banalizar a guerra, e a indiferença com a vida (e a morte) não pode, de maneira alguma, ser usada como recurso na luta política. Agora, seria muita ingenuidade acreditar que essa comoção internacional, e esse bombardeio inesgotável de textos, fotos e vídeos, são apenas uma indignação genuína com os horrores da guerra, e não uma narrativa parcial e oportunista sendo forjada por aqueles que, pelo jeito, nunca se olharam no espelho. Certamente não faltaram motivos para se indignar nas últimas décadas, mas essas outras guerras “menores” envolvem lugares e agentes não tão interessantes de serem evidenciados e discutidos, por distintos e escusos motivos.

É lamentável que, em meio a um conflito trágico como esse, tenhamos que vir a público compará-lo a outros, mas infelizmente é necessário – e não se trata de uma mórbida competição. Grandes contingentes humanos estão sob a sombra ininterrupta da guerra há décadas (séculos?), gerações nascem e morrem nesse movimento, e simplesmente não é aceitável que nossa indignação surja seletivamente apenas quando vidas, territórios – e no limite, a própria ordem ocidental – estejam ameaçados.

Não adianta nada dizer hoje, com cinismo, que qualquer vida perdida importa, mostrando exaustivamente essas histórias interrompidas em todas as telas possíveis, se depois de algumas semanas, 300 mortes na Nigéria ou uma explosão de hospital na Síria sejam eventos tratados em 10 segundos, ou publicados no rodapé da página. Da mesma maneira, não adianta massagear o ego humanista abrindo as portas de casa e do país para refugiados ucranianos (os brancos, obviamente), se aos refugiados congoleses o que se reserva é a morte com um taco de beisebol, e uma interminável relação escravocrata.

Não, nós não estávamos em um mar de segurança e calmaria até que um vilão russo resolveu tirar nossa tranquilidade. Em boa parte do planeta, segurança, calmaria e tranquilidade não fazem parte do vocabulário cotidiano, e infelizmente (para muitos outros responsáveis) não dá para colocar tudo na conta do ex-agente da KGB.

O problema de nos mostrarmos assustados, apenas nesta altura do campeonato, com a ameaça de guerra no mundo, não está na negação, eticamente louvável, dos horrores da guerra. O problema está em uma concepção de mundo um tanto limitada, que se comove apenas com as histórias de um pequeno grupo de países, ignorando solenemente o que acontece em outras latitudes. O seu mundo estava realmente em paz?

1 https://www.unhcr.org/refugee-statistics/

2 https://www.youtube.com/watch?v=WX-EoSLBDp8

3 https://revistaforum.com.br/global/2022/2/25/eua-bombardeiam-somalia-com-drone-enquanto-condenam-ataque-da-russia-ucrnia-110697.html

4 https://diplomatique.org.br/os-conflitos-ignorados/ ; https://www.pagina12.com.ar/407635-el-mundo-en-guerra-mas-alla-de-rusia-ucrania-los-16-conflict ; https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/quem-se-importa-com-os-bombardeios-no-iemen/

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