Por Ana Luiza Chalusniak e Heloisa Fernandes Câmara, publicado em Justificando –
Foi extensivamente noticiado que em 2019 já foram liberados 239 agrotóxicos no Brasil, maior número na história. Objeto de críticas dos movimentos ambientalista e de saúde pública, a resposta governamental foi no sentido de atestar a segurança dos produtos.
Diante das dificuldades de verificar se tais substâncias efetivamente são de uso seguro, este artigo pretende analisar o papel estatal no processo de liberação para ao fim avaliar a correção ou incorreção de tais autorizações.
Inicialmente, dos 239 agrotóxicos liberados, ao menos 78 contém ingredientes classificados como altamente perigosos pela Pesticide Action Network e 24 contém ingredientes proibidos na União Europeia. O uso de agrotóxicos é bem documentado como fonte de diversos problemas de saúde, como mostra, dentre outros, o Dossiê produzido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). É igualmente bem documentado que tais substâncias afetam negativamente a saúde dos consumidores, produtores e inclusive dos lactantes que são contaminados através do leite materno.
Também impactam negativamente no ambiente, vez que contaminam solo e água, além da eliminação de animais e outras plantas. Tem sido noticiado a diminuição significativa de abelhas em decorrência da mortandade provocada pelos agrotóxicos. Apesar dos impactos negativos, é atividade altamente lucrativa. Segundo o dossiê produzido pela Abrasco, em 2014 o faturamento do setor foi de U$ 12 bilhões. Por isso causa espanto a isenção de impostos estabelecida, tendo inclusive questionada judicialmente. A ADI 5553 proposta em 2016 questiona tais isenções, entretanto a ação está conclusa com o relator desde outubro de 2018, sem decisão de mérito.
O papel do Estado na regulação das substâncias
Sob a perspectiva econômica, o estado tem papel fundamental na regulação dos agrotóxicos. Sua função reguladora, indeclinável e indelegável, é determinada pela Constituição Federal (artigo 174), quando estabelece as formas de intervenção do Estado na economia.
A lei 7.802/89 atribui competência conjunta de regulação desses produtos ao IBAMA, à ANVISA e ao Ministério da Agricultura, na tentativa de conciliar, respectivamente, a tutela ao meio ambiente, à saúde e à agricultura.
O Ministério da Agricultura deve avaliar a eficiência agronômica dos agrotóxicos. Dentre as atribuições do Ministério da Saúde, atualmente realizadas pela ANVISA, estão a avaliação toxicológica do produto, o ateste de sua eficiência nos usos ambientais, urbanos, industriais, domiciliares, públicos ou coletivos, ao tratamento de água e uso em campanhas de saúde pública.
E ao Ministério do Meio Ambiente, através do IBAMA, recaem atribuições tais quais averiguação do uso de agrotóxicos em ambientes hídricos, florestas nativas e outros ecossistemas, classificação quanto ao potencial de periculosidade Ambiental, etc.
Qualquer atividade econômica que envolva agrotóxicos, no Brasil, tais como importação, exportação, uso ou comercialização, só pode ocorrer se os produtos forem registrados junto aos órgãos federais competentes.
No entanto, embora haja uma série de cuidados técnicos para a autorização de agrotóxicos, encontra-se em trâmite no Congresso Nacional o PL 6299/02 que veicula alterações na Lei 7.802/89, marco regulatório dos agrotóxicos no Brasil, dentre elas a mudança da expressão “agrotóxicos” para “pesticidas”, “defensivo agrícola” ou “defensivos fitossanitário”. O projeto também prevê que o Ministério da Agricultura, de forma isolada, autorize os agrotóxicos, mesmo quando o IBAMA e a ANVISA ainda não tenham realizado sua análise técnica, visando assim conferir maior agilidade na apreciação dos pedidos.
No portal da ANVISA, a autarquia manifestou-se contrária à proposta de reformulação do marco legal dos agrotóxicos no Brasil (PL 6299/02) e alertou sobre os riscos de serem preteridas as análises de impacto à saúde e ao meio ambiente causadas por tais produtos. Atualmente a ANVISA mantém o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) através do qual realiza o controle do impacto dos agrotóxicos nos alimentos de origem vegetal que são consumidos pela população. A aprovação do projeto de lei, segundo a ANVISA, pode significar a exclusão da competência de regulação dos setores que têm como foco a análise do impacto causado pelos agrotóxicos na saúde e no meio ambiente.
Está no Congresso Nacional proposta de lei “desburocratizadora” para novos registros (PL 6299/02), mas mesmo sem sua aprovação a celeridade com que têm tramitado os pedidos chama a atenção e revela uma política pública de estado incentivadora da proliferação do uso de tais substâncias.
Só no ultimo dia 24/06 a Coordenação Geral de Agrotóxicos e afins do Departamento de Sanidade Vegetal e Insumos Agrícolas, através do ato nº 42/2019 concedeu o registro de mais 42 agrotóxicos. O ato foi publicado no Diário Oficial da União.
Em entrevista à DW Brasil, a coordenadora da força tarefa do Greenpeace que mantém uma espécie de observatório de agrotóxicos, Marina Lacôrte, afirmou que “ o que a gente está vendo é o pacote do veneno em pílulas.” Segundo dados levantados pela organização, o número de agrotóxicos liberados apenas em 2019 é maior do que o aprovado em todos os anos de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015.
Muito embora caiba aos órgãos federais a avaliação técnica e criteriosa a respeito da liberação de novos agrotóxicos, nem todo produto pode ser liberado. Conforme a legislação vigente, são expressamente proibidos de registro os produtos, componentes e afins para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública. Também não podem ser objeto de liberação aqueles produtos para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil; os que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, os que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, os que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório, com animais, tenham podido demonstrar, segundo critérios técnicos e científicos atualizados e aqueles cujas características causem danos ao meio ambiente.
Há também, no atual marco regulatório dos agrotóxicos, um papel importante destinado às organizações , entidades de classe representativa de profissões ligadas ao setor, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e entidades que atuam na defesa de interesses do meio ambiente, consumidor e recursos naturais, pois a Lei 7.802/89 destaca a estas entidades a possibilidade de requerer o cancelamento ou impugnar os registros de agrotóxicos quando os mesmos comprovadamente causarem prejuízos ao meio ambiente, à saúde humana e dos animais.
Mas a liberação recorde destas substancias deve ser entendida em panorama mais amplo de “flexibilização” dos critérios de proteção ambiental e fomento à atividades que potencialmente comprometem o meio ambiente. Tem-se também a destruição dos pilares de outros modos de produção de alimentos. Neste sentido acompanhar as recentes desventuras estatais acerca do Fundo Amazônia ajuda a iluminar este processo.
O Fundo Amazônia
Criado em 2008 pelo Decreto 6257/08, o Fundo Amazônia tem como atribuição a realização de aplicações não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal. A gestão dos recursos doados ao Fundo é feita pelo BNDES e tem como maiores patrocinadores a Noruega, a Alemanha e a Petrobras.
Presidido pelo Ministro do Meio Ambiente, o Fundo conta com um Comitê Orientador – COFA, de composição tripartite: membros indicados pelos Ministérios Federais, membros representantes dos Governos dos estados da amazônia legal e representantes da sociedade civil. O BNDES é o gestor do Fundo, mas as deliberações sobre a aplicação dos recursos são feitas pelo COFA.