Por Alexandre Morais da Rosa e Michelle Aguiar, para o site Empório do Direito –
Cada vez mais são noticiadas conduções coercitivas para fins de investigação, deferidas pela autoridade judiciária, determinando-se com luzes, imprensa, muita pressão psicológica, que os sujeitos sejam levados à autoridade policial.
Necessária, de plano, a distinção entre condução de testemunhas e investigados. No caso de testemunhas, a autoridade policial deve colher o respectivo depoimento (CPP, art. 6º, III) e, em caso de renitência, poderá ser conduzida (CPP, art. 218), conforme sublinhou o STF (Habeas Corpus n. 107.644-SP). Já quando se tratar de investigado – indiciado ou não -, todavia, discute-se a obrigação de comparecimento e manifestação pessoal do direito ao silêncio, diante da regra do art. 260 do CPP.
O que se verifica, em alguns casos, é o drible de intimar potenciais investigados na condição de testemunhas, mesmo sabendo-se que deveriam ser na condição de investigados. Essa prática, muito comum em Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs), já foi rechaçada pelo STF, várias vezes, cabendo destacar o voto do Min. Marco Aurélio que garantiu em liminar, nos autos do Habeas Corpus n. 114.879 MC-DF, os seguintes direitos:1) de não ser obrigado a assinar termo de compromisso de dizer a verdade; 2) de permanecer calado ou silenciar; 3) de não se autoincriminar; 4) de ser assistido por advogado, podendo comunicar-se livremente e em particular; 5) de não ser preso por desobediência ou falso testemunho, diante do exercício das referidas prerrogativas; 6) de ter acesso a todos os elementos de investigação colhidos até então; 7) de presenciar e acompanhar, por meio de defesa pessoal ou técnica, a produção de provas no curso da aludida CPMI.”
A pergunta, portanto, é a de qual a motivação da condução coercitiva?
Na lógica democrática da apuração criminal o investigado é intimado para comparecimento e não atende ao chamado. Daí que o passo seguinte é a discussão sobre os limites da aplicação da condução coercitiva ao investigado que não comparece, dada a matriz autoritária do art. 260 do CPP, anterior à Constituição da República. Por ela, elimina-se a voluntariedade do agente de apresentar-se ao ato, uma vez que este acaba por ser obrigado a comparecer independentemente de sua vontade.
Por mais que se negue, é nítido que há a configuração de verdadeiro meio cerceador de liberdade, ainda que seu caráter seja temporário. Além disto, essa prática constantemente se traduz como mecanismo intimidatório frente ao investigado, muitas vezes sendo utilizada para que dele se “extraída a verdade”[1]. Representaria, portanto, claro resquício da matriz inquisitiva.
Conforme sustentaram Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa: “Ocorre que tal procedimento não é autorizado, sequer, pelo vetusto, autoritário, inquisitorial e fascista Código de Processo Penal de 1942, pois o art. 260 só autoriza a tal condução coercitiva se o acusado (ou o indiciado) “não atender à intimação para o interrogatório”, situação diversa da decorrente de flagrante delito em que o suspeito pode ser conduzido para autoridade policial (CPP, art. 6º III, V e art. 144, § 4º, da Constituição da República). Aliás, a regularidade da ação policial tão logo cometido o crime já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (HC 107.644/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski)[i], situação diversa da decorrente da espetacularização do Processo Penal (Rubens Casara).”[2]
Neste mesmo sentido, preceitua Delmanto Jr.: “Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já que de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de todo esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judicial, é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar, consistiria inadmissível coação, ainda que indireta.[3]
É pura lógica! Ninguém faz com que outra pessoa seja deslocada do local em que se encontra para permanecer em silêncio, porque ao se optar pelo silêncio, tem-se a mesma consequência de que se o investigado não comparece ao ato previsto em lei: exercício de autodefesa manifestada através da opção por não falar, ou seja, desdobramento direto do princípio da ampla defesa concretizada através da vontade do acusado de não se auto incriminar.
Nesse sentido, a condução coercitiva se apresenta como um imperativo prejudicial à defesa. Isto porque é absolutamente ilusório crer que o magistrado ao determinar a condução coercitiva do investigado não tenha nenhuma expectativa de que este forneça as respostas para a qual será inquerido, bem assim pode servir de aviso subliminar de que se não colaborar poderá ser preso cautelarmente. Assim, diz Maria Elizabeth Queijo: “não se pode desconsiderar que a condução coercitiva exerce certa compulsão sobre o acusado para que participe ativamente no interrogatório, respondendo às indagações formuladas. É ínsita à condução coercitiva a expectativa de que ele responda às perguntas que lhe serão dirigidas no interrogatório.”[4]
De sorte que o direito de calar-se não pode jamais sofrer uma relativização ou supressão, uma vez que isso gera o inevitável afastamento das regras do jogo[5] bem como do Processo Penal Democrático.
Privar alguém de escolher como exercerá a sua defesa, constitui verdadeira afronta não só aos direitos e garantias fundamentais do investigado, bem como ao processo penal democrático. É inegável que “a ninguém é dado produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere: “nada a temer por se deter”), o que implica, necessariamente, no afastamento do art. 260 do Código de Processo Penal, em uma interpretação conforme a Constituição da República (art. 5º., § 2º).”[6]
Tal noção é complementada por lição trazida por Aury Lopes Jr.: O ‘direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado’ e acrescenta que do exercício do direito ao silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico ao imputado, na medida em que no processo penal só há presunção de inocência. Por conseqüência, qualquer tipo de recusa não autoriza presumir-se a culpabilidade, muito menor por configurar delito de desobediência. Portanto, o princípio da não auto-incriminação decorre não só de poder calar no interrogatório, como também do fato de o imputado não poder ser compelido a participar de acareações, de reconhecimentos, de reconstituições, de fornecer material para exames periciais, tais como exame de sangue, de DNA ou de escrita, incumbindo à acusação desincumbir-se do ônus ou carga probatória de outra forma.”[7]
Desta forma, não se pode conceber que a condução coercitiva seja utilizada como instrumento de intimidação ou, na pior das hipóteses, como meio de tortura flex e gere fortalecimento de arbitrariedades. Afinal, o comparecimento do investigado/acusado é um direito e não um dever. Assim é absolutamente inconcebível que uma garantia inerente ao indiciado seja suprimida pela subjetividade da autoridade policial/judiciária. Não existe direito pela metade, tampouco há a possibilidade de que princípios e garantias fundamentais sejam relativizados, dada a não recepção do art. 260 do CPP.
Notas e Referências:
[1] Tal noção de extração da verdade foi colocada entre aspas, uma vez que a busca pela verdade real representa verdadeiro um verdadeiro Mito, vez que não existe uma verdade absolutamente incontestável, bem como conduz á um desequilíbrio da imparcialidade, do julgador. Sobre este tema, leciona Rubens Casara: “ O principio, ao mesmo tempo em que serve de diretriz à persecução penal, uma vez que arrasta o órgão julgador á produção de provas, dirige-se à reconstrução histórica, justificando a busca de bases probatórias da decisão penal” (CASARA, Rubens R. R.; Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 165.
[2] MOREIRA, Rômulo de Andrade; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Condução coercitiva é prática ilegal e odiosa nas operações plim-plim. http://emporiododireito.com.br/conducao-coercitiva-e-pratica-odiosa-e-ilegal-nas operacoes-plim-plim-por-alexandre-morais-da-rosa-e-romulo-de-andrade-moreira/
[3] DELMANTO JR, Roberto. Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 192-193.
[4] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: O princípio do nemo tenetur se detegere e suas consequências no processo penal. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 238
[5] ROSA, Alexandre Morais da. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal.2ª ed. Santa Catarina: Rei dos Livros, 2015, p.46.
[6] MOREIRA, Rômulo de Andrade; MORAIS DA ROSA, Alexandre http://emporiododireito.com.br/conducao-coercitiva-e-pratica-odiosa-e-ilegal-nas operacoes-plim-plim-por-alexandre-morais-da-rosa-e-romulo-de-andrade-moreira/
[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).
Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com