Quando a cultura azula os anos de chumbo revividos

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Os últimos anos não têm sido fáceis para a cultura brasileira. Mas pelo menos houve lançamentos recentes tais como o álbum de canções inéditas de Aldir Blanc, o álbum novo de Caetano Veloso e o livro de contos de Chico Buarque. Quando me deparo com material assim, desse naipe, desses artistas grandes, sinto-me mais à vontade para refletir sobre a situação do país e do mundo. Sinto-me como alguém que tenha saído da inércia. Sinto-me também menos desamparado, menos acanhado. Se você ainda não os ouviu, se ainda não os leu, é urgente fazê-lo.

Por Cícero César Sotero Batista, doutor, mestre e especialista na área da literatura




Dois grandes álbuns, os de Caetano Veloso e o de Aldir Blanc. O de Aldir é um disco musicalmente muito bonito que revela a todos o grande letrista que sempre será. Sobre o do Caetano, fiquei espantado com a clareza do projeto: o disco é o que diz, é o que se ouve, e é vibrante. Recado dado sem subterfúgios: o Brasil é muito grande, não tem como nem ficar preso a mumunhas regressivas.

Talvez não estejamos prontos, nem cheguemos a ser o que sonhávamos, talvez o projeto de nação tenha muitas rachaduras, a desigualdade social se alastre mais do que as queimadas na Amazônia, ainda assim temos motivos de sobra para nos orgulharmos de nossa contribuição ao mundo, especialmente quando nos referimos à nossa cultura. E iremos continuar a fazê-lo porque temos tradição na área, para seguir e para romper.

Quanto ao livro de contos do Chico, comprei a versão física, que custou quase o dobro da versão Kindle. Acontece que o livro de Chico, o “Anos de chumbo e outros contos” (Cia das Letras, 2021), não é só o conteúdo, mas também: o tamanho do livro (mais ou menos do tamanho de um Kindle); a escolha da cor de chumbo em diálogo com a lombada preta para a capa dura (que me remeteu à coleção dos livros de Freud que tenho em casa); a figura abstrata (que me remeteu a uma mulher arrodeada de muitos fios); a formatação das letras, com uma fonte grande que não cansa as vistas; a qualidade do papel etc.

Em suma, não me espantaria se alguém do marketing da editora disse que é um projeto de qualidade que vale o que se paga.

Não quero me adiantar nas interpretações dos contos. Por enquanto, não. Mas posso dizer que por vezes parece que estou lendo a prosa de Chico Buarque em velocidade vertiginosa. Sabe aquele recurso do WhatsApp que nos permite ouvir os áudios mais rapidamente? Pois é. Talvez pareça piada, mas o leitor tem que ter fôlego para acompanhar os causos. Fôlego e estômago, por vezes.

Também tem que ter um gosto por situações inusitadas, por comédias de erros, por toques de literatura fantástica, por mundos possíveis na literatura em uma cidade que pode ser do tamanho do mundo de Copacabana.

Passeia-se pela auto ficção também. Fala-se da questão central da identidade brasileira, de quem somos, do quanto escamoteamos a nossa descendência negra, da violência naturalizada, dos anos de chumbo, nódoa de nossa história recente à flor da pele.

Quanto a este último aspecto, não é demais lembrar que, a despeito de tantas advertências, viu-se despontar um temporão carnegão, que louva o que seria execrável.

São anos de chumbo, de chumbo grosso sobre a gente. Mas resistiremos.

Sobre autor:

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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