Por André Bernardo, compartilhado de BBC News Brasil –
Quando soube de sua cassação, o entomologista (estudioso de insetos) carioca Sebastião de Oliveira, de 52 anos, custou a acreditar. “Você esquece que hoje é 1º de abril?”, rebateu ele à técnica de laboratório do parasitologista Herman Lent que lhe dera a notícia.
Dali a pouco, o telefone tocou. Do outro lado da linha, alguém confirmava a cassação: “Está dando na Rádio Globo”. Só depois de ouvir o noticiário é que ele se convenceu. Não foi o único.
Naquele mesmo dia, o químico Moacyr de Andrade, também cassado, procurou o amigo Lent, referência mundial no estudo do barbeiro, o inseto transmissor da Doença de Chagas, para lhe dar a triste notícia: “Não precisei falar nada: o Herman tinha os olhos marejados”, contou Moacyr, em 1986.
No dia 1º de abril de 1970, pouco mais de um ano depois do Ato Institucional nº 5 (AI-5), Sebastião de Oliveira e Moacyr de Andrade foram dois dos dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), embrião da atual Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tiveram seus direitos políticos cassados. Foram aposentados compulsoriamente e impedidos de trabalhar em qualquer instituição pública do país.
Acesso bloqueado
Ao todo, faziam parte da “lista negra” publicada no Diário Oficial, além dos já citados Sebastião José de Oliveira (1918-2005), Herman Lent (1911-2004) e Moacyr Vaz de Andrade (1920-2001), os pesquisadores Augusto Perissé (1917-2008), Domingos Arthur Machado Filho (1914-1990), Fernando Braga Ubatuba (1917-2003), Haity Moussatché (1910-1998), Hugo de Souza Lopes (1909-1991), Masao Goto (1919-1986) e Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti (1905-1990).
Todos tinham mais de 30 anos de carreira, eram reconhecidos internacionalmente por sua produção científica e coordenavam equipes de jovens pesquisadores em seus laboratórios.
Apesar de seus currículos invejáveis, tiveram que retirar seus pertences às pressas e, a partir do dia seguinte, foram proibidos de colocar os pés na instituição. Até o acesso à biblioteca foi vedado.
‘Impacto terrível’
O episódio entrou para a história da Ciência brasileira como “O Massacre de Manguinhos”.
O termo foi cunhado pelo entomologista Herman Lent numa alusão ao bairro da Zona Norte do Rio onde fica o Pavilhão Mourisco, prédio-símbolo da Fiocruz, e eternizado como título de seu livro, lançado em 1978 e relançado em 2019.
A capa da primeira edição, desenhada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), exibe a ilustração do Castelo Mourisco, com uma de suas torres desmoronando.
Com a cassação dos dez cientistas, seus laboratórios foram fechados, suas pesquisas, interrompidas e suas equipes, desfeitas.
“A ditadura militar teve um impacto terrível sobre o desenvolvimento científico brasileiro”, avalia a socióloga Wanda Hamilton, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC).
“Não só sobre os dez cientistas cassados, mas sobre todo o Instituto Oswaldo Cruz. Tanto que, em 1974, o ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, declarou que a Fiocruz era um ‘cadáver insepulto’ na Avenida Brasil.”
Se cada um dos dez cientistas tivesse preparado um profissional por ano, teriam formado, de 1970 a 1986, 160 novos cientistas. Um número grande, mas abaixo do real.
Só na Divisão de Fisiologia e Farmacodinâmica, onde atuava o médico turco Haity Moussatché, havia, em 1970, 20 estudantes.
O biólogo Renato Cordeiro, pesquisador do IOC, era um deles. “Eu e outros estudantes fomos expulsos dos laboratórios e impedidos de entrar na instituição”, recorda o autor do posfácio Momentos sombrios para não serem esquecidos pelas novas gerações, do livro de Lent. “Pesquisas foram interrompidas e sonhos, destruídos.”
Buscando sobrevivência
Impedidos de trabalhar em outras instituições de ensino e pesquisa com verbas públicas, os 10 cientistas trilharam os mais diferentes caminhos.
Domingos Machado permaneceu como professor da Faculdade de Medicina de Valença, e Hugo de Souza Lopes continuou suas pesquisas no Museu Nacional, mas, sem poder ser contratado.
Sebastião Oliveira prestou serviços à iniciativa privada e Masao Goto dedicou-se em tempo integral a sua clínica particular. Até assumir a chefia de controle de qualidade de produtos farmacêuticos e alimentícios de uma empresa, Moacyr Vaz de Andrade ficou dois anos e meio desempregado.
“A maior preocupação do meu pai era: como sobreviver sem o salário perdido com a cassação? E sem poder trabalhar em qualquer entidade pública?”, recorda o neurocientista Roberto Lent, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e filho de Herman Lent.
“Felizmente, foi acolhido pelo presidente da Academia Brasileira de Ciências, Aristides Leão, que o convidou para ser editor das publicações da casa.”
Outros quatro cientistas seguiram para o exterior: Augusto Perissé passou a fazer pesquisa científica na França e na Alemanha, Fernando Ubatuba deu aulas na Inglaterra e na Escócia, e Haity Moussatché e Herman Lent foram contratados por universidades da Venezuela.
“As cartas trocadas entre os que partiram para o exílio e os que ficaram no Brasil revelam angústias, problemas e saudades”, atesta o cientista político Gilberto Hochman, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde.
Pesquisadores responderam a três inquéritos
Muito antes de serem cassados, em abril de 1970, os dez cientistas já eram alvos do regime militar.
Entre 1964 e 1966, responderam a três inquéritos: civil, militar e administrativo. Quando eram chamados para depor, sob acusação de serem “corruptos”, “subversivos” e “conspiradores”, tinham de responder a perguntas do tipo: “Você é comunista?”, “Faz parte de algum partido político?” ou “Exerce alguma atividade política no IOC?”.
Em geral, quem respondia “não” a todas as perguntas era liberado em poucos minutos.
Em 1968, o bioquímico gaúcho Fernando Ubatuba, de 51 anos, chegou a passar 14 dias incomunicável no paiol de pólvora do Exército, em Paracambi, a 75 km do Rio, na Baixada Fluminense.
Nenhum dos inquéritos conseguiu provar nada contra qualquer um dos pesquisadores.
“Os relatórios produzidos pelos órgãos de repressão revelaram muitos aspectos nublados do período, como o fato de não existirem provas, suficientes, concretas e reais, sobre a suposta subversão ou inaptidão profissional dos cientistas cassados”, afirma o historiador Daniel Elian, autor da dissertação de mestrado Ciência, Política e Segurança Nacional: O ‘Massacre de Maguinhos’ (1964-1970) e do livro Massacre de Manguinhos: Ciência Brasileira e o Regime Militar (1964-1970), que será lançado em breve pela Editora Hicitec.
Em depoimento ao documentário O Massacre de Manguinhos, de Lauro Escorel Filho, o médico paulista Tito Arcoverde confirma: “Respondemos a vários processos e ninguém foi indiciado”.
Por essa razão, quando foi publicada a cassação no Diário Oficial do dia 2 de abril de 1970, a notícia surpreendeu a todos. Logo entenderam que a decisão fora tomada por motivações pessoais.
Para a maioria deles, o médico Francisco de Paula da Rocha Lagoa, ex-diretor do instituto, teria usado o novo cargo, de Ministro da Saúde, para concluir um projeto de vingança.
“Como nós tínhamos denunciado desvio de verba da malária, da peste bubônica e da meningite, estávamos muito visados”, afirma Domingos Machado, em entrevista ao mesmo documentário.
Os cientistas foram perseguidos, também, por divergir sobre o papel social do IOC.
Enquanto aqueles que detinham o poder, como Rocha Lagoa, nomeado diretor em 1965, queriam que a instituição se limitasse a produzir soros e vacinas, os cientistas acreditavam que a produção científica era um importante instrumento para o desenvolvimento nacional.
Mais que isso, defendiam a criação de um Ministério da Ciência e da Tecnologia, um sonho que só se tornaria realidade em 1985, com a redemocratização do país.
“Víamos a ciência como algo fundamental para o desenvolvimento socioeconômico do país. Eu podia me aposentar. Já tinha mais de 35 anos de serviços. Mas, eu disse: ‘Eu não. Eu não me aposento. Vou cair. Mas, vou cair em pé’. E fiquei aqui até que me cassaram”, relatou Haity Moussatché ao Acervo de História Oral da Casa de Oswaldo Cruz.
Por essas e outras, os dez cientistas foram taxados de subversivos e acusados de conspirar contra a administração pública. Em uma das visitas que fez ao laboratório de Lent, logo que assumiu a direção, Rocha Lagoa chegou a comentar, ao discorrer sobre seus planos para a instituição, que se baseava na orientação do Pentágono, a sede do Departamento de Defesa dos EUA. “Não pude deixar de emitir uma sonora gargalhada”, relata Lent, no livro O Massacre de Manguinhos.
Nem o filho do fundador da instituição, Walter Oswaldo Cruz, escapou ileso. Por recomendação de Raymundo de Britto (1909-1988), ministro da Saúde do governo Castelo Branco, Rocha Lagoa ordenou que todo e qualquer recurso destinado ao IOC passasse pelo seu crivo.
Acusado de propaganda subversiva e proselitismo político, Oswaldo Cruz deixou de receber os repasses vindos de instituições americanas, como as fundações Ford e Rockefeller.
Seu laboratório chegou a ser fechado pela direção. Em 1967, teve um infarto fulminante e morreu aos 57 anos.
“Desde 1964, o filho de Oswaldo Cruz foi vítima de perseguição política. Há quem atribua seu adoecimento ao estrangulamento de suas pesquisas”, observa Hochman.
Em 1969, Rocha Lagoa foi nomeado ministro da Saúde do governo Médici e a situação no instituto se tornou insustentável. Seis meses depois de sua nomeação, os dez cientistas que ele perseguira implacavelmente durante sua gestão foram defenestrados da instituição. Em 1978, em depoimento à revista IstoÉ, Rocha Lagoa se isentou de qualquer responsabilidade.
Ao assumir o ministério, explicou ao repórter Maurício Dias, já havia duas comissões de inquérito, ambas instauradas na gestão de seu antecessor, Raymundo de Britto, investigando os pesquisadores.
Em O Massacre de Manguinhos, Lent rebate essa versão. “Como diretor do instituto, o Lagoa pleiteou nossa saída junto a dois ministros, mas não conseguiu. Quando ele se tornou ministro, fez o que quis.”
Cientistas reintegrados 16 anos depois
Em 1986, cinco anos depois da sanção da Lei de Anistia, os dez cientistas foram reintegrados à Fiocruz. Apenas Lent optou por não regressar à instituição. Preferiu continuar dando aulas na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, que o acolhera em 1976.
“Ao voltar para o Brasil, meu pai foi acolhido pela Santa Úrsula e convidado a montar um laboratório de pesquisa. Ele achou que não seria correto abandoná-la para voltar à Fiocruz”, relata seu filho, Roberto.
Os demais pesquisadores sugeriram nomes que consideravam importantes para o desenvolvimento de suas pesquisas. O então presidente da Fiocruz, o médico sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003), autorizou todas as contratações.
A cerimônia de reintegração aconteceu no dia 15 de agosto e contou com a presença, entre outros, do ator Mário Lago (1911-2002), presidente da Comissão Nacional de Anistia; do deputado federal Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Câmara; e do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), então vice-governador do Rio.
“A dor que me dói, a lágrima que eu choro, é pelas pesquisas que foram interrompidas e nunca mais se farão. É pelos jovens cientistas que teríamos formado e que não se formarão nunca. A Ciência é a última profissão que não se aprende nos livros. É um cientista que cria outro. E vocês, os mais preparados para frutificar novas gerações, foram proibidos de se multiplicar”, discursou Darcy Ribeiro.
Os dez cientistas concederam uma série de entrevistas às pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz, Wanda Hamilton e Nara Azevedo. Por vezes, caíram na risada ao recordar o absurdo das investigações. Certa vez, foram acusados de promover “feijoadas e vatapás subversivos” nas dependências da instituição.
Emocionados, lembraram, ainda, da solidariedade prestada por seus funcionários. Um deles disse a Sebastião de Oliveira que, caso ele precisasse, poderia pegar o que quisesse em uma conta que mantinha em um armazém das redondezas.
“Homenagear a memória dos cientistas cassados e de todos aqueles que sofreram perseguições políticas é uma advertência: não haverá desenvolvimento científico e tecnológico sem memória, liberdade e justiça. Defender a Ciência é defender a democracia”, afirma Hochman.