Quando a humildade viaja de trem e ônibus no subúrbio

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos coloca em ônibus e trem do subúrbio do Rio de janeiro para uma viagem que a maioria da população faz todos os dias. Literalmente, o cronista nos convida a sentar ou se apertar no lugar do sofrido povão brasileiro.

Apertem os cintos, se tiverem.




“De vez em quando os presunçosos deveriam passar por uma série de testes de humildade na qual incluiria se locomover por intermédio de coletivos pelos grandes centros urbanos do país. Seria um bom choque de realidade? A princípio, sim. Sendo realista, talvez para alguns seria uma tomada de consciência, mas não para todos. Afinal, o mundo anda estranho com muita gente empenhada em mandar o próximo se danar sem maiores reflexões.


Seja como for, para mim o sonho feliz de um alto IDH passa por um tipo de “mobilidade” (uso-a entre aspas por falta de palavra melhor) mais humana: pontual, limpa, confortável e segura para muitos.


Mesmo sem me considerar um sujeito presunçoso, passei pelo tal teste de humildade recentemente. De onde eu moro, em Nilópolis, munícipio da Baixada Fluminense, tomei duas conduções para ir à casa de minha mãe, no Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio.


No primeiro ônibus eu precisava chegar até o bairro de Cascadura para fazer baldeação. Poderia ter pegos vários ônibus, mas embarquei em um cujo motorista guiava modorrentamente, como se fosse um motorneiro.


Pela janela eu vi os novos conjuntos habitacionais que vão se formando próximos das linhas dos BRTs. São feios, causam impacto visual negativo; mais feias ainda são as compridas caixas d´agua em forma de cilindro, que podem levar à lembrança uma floresta de árvores altas de que restaram apenas os troncos.


A viagem seguia tranquila até o embarque de um passageiro meio excêntrico. Pelo que entendi era um homem que já foi mendigo e que encontrou a salvação quando abraçou Jesus. Só que, para o desespero de todos os passageiros, ele “pareou” o celular a uma caixinha de som de onde saiu a todo volume um passional louvor cheio de notas altas.


Quando um passageiro reclamou do som alto (o que deveria ter sido feito por todos no coletivo, aliás), o sujeito começou a falar incessantemente de Deus, de como foi salvo e de como aqueles que não aceitaram Jesus não seriam salvos no Dia do Juízo Final. Senti-me salvo quando desci em Cascadura.

O segundo ônibus não demorou. Entretanto, para compensar, o motorista era inexperiente na linha e não tinha troco. Aí eu me pergunto: para onde foram os trocadores de ônibus? Por sorte eu tinha uma nota de cinco reais. Resolvi o meu problema. Quando um passageiro precisou de uma informação, o pobre do motorista não soube responder.


Bem, o “motor” poderia usar o Google Maps ou aplicativo semelhante se no coletivo tivesse WIFI ou coisa semelhante. Não havia nada nem sequer parecido neste ônibus, que também não se destacava nem pela limpeza nem pela conservação. Eu não queria nada de mais, não era uma exigência imcompatível com o serviço oferecido. Eu queria um ônibus limpo, silencioso, confortável. Mas a cada freada o pobrezinho do coletivo parecia que ia se espatifar com os passageiros dentro.


Fiquei pouco tempo na casa de minha mãe. Umas duas, três horas no máximo. Nem conversamos direito. Paciência. Visitinha de médico.


Na volta, fui de ônibus até a estação ferroviária de Engenho de Dentro, de onde peguei o trem com destino a Nilópolis. Curiosamente, o vaivém dos camelôs não me incomodou. Eles falam alto demais também. Mas exclamam pregões, não pregações.


Só que eu não me lembrava de que tinha que fazer baldeação na estação Deodoro. Só me dei conta de que deveria ter saído da composição quando o cenário começou a mudar: eu vi a arquitertura antiga das casas dos oficiais e dos quarteis a passar por mim e a ficha caiu: eu estava indo no sentido Santa Cruz, e não no sentido Japeri.


Só eu mesmo para bancar o distraído desse jeito. Desci na estação Magalhães Bastos, a primeira depois da de Deodoro. Já peguei o trem com torcedores do Vasco indo para o jogo – faltavam pelo menos duas horas para o início da partida entre Vasco e Nova Iguaçu, semifinal.

Dei-me conta de que meu filho jamais foi a um jogo em estádio de futebol e prometi a mim mesmo que em breve eu o levaria. Talvez ele gostasse daquele clima: das pessoas uniformizadas na condução indo torcer para os seus times de futebol. “Domingo eu vou ao Maracanã”, é assim que se começa uma canção de futebol de que gosto muito. Acho que a canção cabia na cena. Sabe como é que é, até que o trem, quando vazio, não é tão ruim assim, não.


Voltei à estação Deodoro e fui ficando mais telegráfico, já tendo me rendido ao cansaço. Comprei um saco de biscoito Fofura. Senti cheiro de urina na plataforma. O trem que ia para o Maracanã foi revistado por policiais com enormes cassetetes. Ficou bem uns dez minutos parado.


Tive sede mas a preguiça me fez ficar no meu lugar feito um jacaré. Agora o modorrento era eu. Me lembrei da análise do sociólogo Francisco de Oliveira sobre como os camelôs e donos de biroscas aumentam os lucros da Coca-Cola.


Desci em Nilópolis, são e salvo. Parecia que eu saía de um filme de aventuras. Há pessoas que fazem diariamente o que fiz.


É assim que se faz pesquisa de campo ou não é? Tem que se conhecer o chão da escola e o da plataforma do trem, bem como o assoalho dos ônibus. Transporte de massa começa a melhorar quando a classe média passa a utilizá-lo, é não é uma boa provocação. É quando se embarca contra a demofobia.
Dá licença, que eu vou descer.”

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