Quando a vida do entregador vale menos que a pizza

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Por Victor Farinelli, publicado em Cara Maior

Uma história real sobre o trabalho no Século XXI

“Como está o pedido? Está em bom ou mal estado para poder ser entregue?”.

As perguntas não foram acidentais, mas surgiram em meio a um acidente de trânsito real ocorrido neste fim de semana, em Buenos Aires.




 

O protagonista desta história é Ernesto, um homem de 63 anos que trabalha para a empresa Glovo, um desses aplicativos de entrega a domicílio, que opera na Argentina.

Ernesto estava a uma quadra e meia do local de destino da pizza que transportava, quando um carro o atropelou. O acidente (felizmente) não chegou a colocar sua vida em risco, mas foi forte o suficiente para deixá-lo imobilizado durante o socorro médico. Minutos depois, ao ser informada do acidente, a central de operações de Glovo entrou em contato com ele e fez a pergunta que era mais importante para eles naquele momento:

– Como está o pedido? Está em bom ou mal estado para poder ser entregue?

– Não sei, não posso me levantar – respondeu Ernesto

– Espere um momento, por favor. Ernesto, poderia me mandar uma foto dos produtos por favor? – perguntou novamente a pessoa da central de operações.

– Não, não posso me mover – voltou a responder o trabalhador.

– É parte do procedimento, por favor. Você teria que mandar a foto para poder cancelar o pedido – insistiu a empresa.

– Impossível me mover – retrucou o motoqueiro.

O caso se tornou conhecido em todo o país e em várias partes do mundo graças à jornalista Yanina Otero, que foi uma das pessoas que estava próxima ao local. Ela ajudou no socorro do entregador, e depois soube do problema, tirou uma foto da tela ainda suja de sangue mostrando o lamentável diálogo e publicou em suas redes sociais.

O relato de Otero foi o seguinte: “ajudei a socorrer um entregador atropelado por um carro. Enquanto eu chamava a ambulância, o homem – jogado no chão e sangrando – avisou a empresa sobre o acidente. O único que lhes importou foi o estado da pizza. Perverso é pouco”.

Horas depois, a imagem havia viralizado e a repercussão negativa fez com que a empresa Glovo se pronunciasse, reconhecendo “um erro no manejo deste caso específico, já que os protocolos de ação não foram cumpridos corretamente (…) o primeiro passo do protocolo é confirmar o estado do entregador e entrar em contato com o serviço de saúde no menor tempo possível”.

Mas a história não termina aí, já que Ernesto, também depois da comoção nacional que seu caso gerou, deu declarações à imprensa defendendo a empresa, afirmando que “a dúvida deles é pertinente, porque tem muitos entregadores que inventam mentiras para afanar a mercadoria”.

O caso de Ernesto é uma crônica sobre o trabalho precarizado e desumanização das relações empregatícias neste Século XXI. Tempos de mega concentração econômica e flexibilização das leis trabalhistas, consequências desse neoliberalismo recarregado que vem se estabelecendo como guia econômico dos novos governos na América do Sul, como a Argentina de Mauricio Macri, mas também o Brasil desde Michel Temer, e mais ainda com Jair Bolsonaro.

Há várias reflexões que se podem fazer sobre o episódio. Uma delas é sobre se é correto condenar o trabalhador por uma declaração que justifica o atuar vergonhoso da empresa. Não é possível saber se a frase é resultado de um funcionário com medo de perder até mesmo esse trabalho precarizado, e ter que enfrentar o desemprego exorbitante de uma Argentina afundada em enorme crise financeira.

Contudo, mesmo que seja o outro caso, daquele tipo de trabalhador que pensa que está no mesmo nível do patrão, seria também mais um exemplo da derrota da disputa cultural por parte do campo popular, que ao não saber mais dialogar com a sociedade sobre os seus valores, permite que os da elite se imponham até mesmo na cabeça dos que mais sofrem com este modelo de relação de trabalho.

Para mudar esta situação, será preciso mais que novas lei ou novos governos que recuperem, no futuro, os direitos trabalhistas perdidos nestes últimos tempos. Será preciso também enfrentar a batalha cultural e comunicacional, aquela que os já superados governos progressistas latino-americanos não tiveram coragem de enfrentar, mesmo em seus melhores momentos, e razão pela qual tiveram como resultado a perda da hegemonia e do poder.

O fato é que casos como os deste fim de semana tendem a se tornar mais frequentes, também no Brasil, em um futuro onde as regras são pensadas visando proteger mais as pessoas enquanto consumidoras do que enquanto trabalhadoras ou cidadãs.

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