Quando dois estudantes de direito resolveram agir para reverter prisões preventivas ilegais

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Por Luiz Claudio da Silva Leite e Lucas Arieh Bezerra Medina, publicado em Justificando – 

Em Natal, seria mais um dia comum se não fosse a presença de dois acadêmicos de direito no Juizado Especial Cível e Criminal, local onde se realizam as audiências de apresentação, popularmente também conhecidas como “audiências de custódia”.

Em que pese o mês de setembro ainda contemple o inverno no hemisfério sul, quem mora próximo aos trópicos conhece muito bem o calor que caracteriza esse período. Em Natal, seria mais um dia comum se não fosse a presença de dois acadêmicos de direito no Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Natal, local onde se realizam as audiências de apresentação, popularmente também conhecidas como “audiências de custódia”.

Atualmente, estas ocorrem em um prédio histórico no centro de Natal, projetado em 1935[1] e ora utilizado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.




Ironicamente, a edificação que até 1987 sediou o Grand Hotel e se notabilizou por abrigar militares estadunidenses em plena segunda guerra mundial e diversas autoridades, como Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra. Nesse tempo, a cidade do Natal e o Parnamirim Field serviram como um trampolim decisivo para a vitória dos aliados e a derrocada do regime nazifascista.Desvendando a seletividade penal do caso Rafael Braga

Todavia, em um contraste surreal, o mesmo prédio que abrigou várias personalidades importantes hoje se ocupa de hóspedes pobres, majoritariamente negros e quase sempre presos preventivamente sob a acusação de cometerem crimes sem violência. Diante disso, provocados pelo Anunciação, os estudantes foram acompanhar as audiências para tentar reverter prisões preventivas ilegais e desarrazoadas.

Em tempos nos quais o ensino superior público e gratuito parece ameaçador, o Projeto Anunciação[2] é uma das várias iniciativas desenvolvidas e mantidas pelos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que aliam o ensino, a pesquisa e a extensão. Para isso, os participantes do projeto são “tutorados” por advogados experientes que acompanham os casos; debatem as teses juridicamente viáveis; contatam os flagranteados, bem como suas famílias, e adotam os meios jurídicos cabíveis para aplacar as prisões ilegais.

Em decorrência da celeridade e facilidade de emprego do habeas corpus, o remédio heroico acaba sendo a principal ferramenta para restituir a liberdade aos flagranteados.

Diante dos absurdos rotineiros, a atuação dos estudantes deveria ser extremamente eficaz. No entanto, percebe-se a reprodução de vários absurdos e ilegalidades que se apresentam como regra e revigoram a atualidade da crítica de Kafka à obscuridade planejada do sistema de (in)justiça criminal. Daí a necessidade de expor-lhe os porões, motivo pelo qual se relatará o caso que ensejou a impetração do Habeas Corpus/TJRN nº 0807833-77.2018.8.20.0000.

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Contrariando o estigma social do traficante[3] como um sujeito ameaçador e confirmando a crítica de Zaccone[4], os acadêmicos encontraram naquela tarde um jovem de 18 anos recém-completos que insistia em sobreviver com apenas R$ 300,00 mensais auferidos da sua atividade de catador de lixo. Segundo relatos, metade dessa quantia seria destinada ao pagamento do aluguel do imóvel no qual era inquilino e a outra metade servia para arcar com todas as outras obrigações e despesas.

Quis o destino, reforçando seu desprezo pelos do andar de baixo, que este jovem fosse preso em uma madrugada. Segundo o relato policial, a prisão resultou de uma denúncia anônima que informou que o jovem plantava e comercializava maconha em sua própria casa. Ao ser apreendido, os agentes estatais encontraram 0,79 grama de maconha, 1 faca e 05 pequenas mudas de maconha em estágio embrionário e desprovidas de propriedades psicotrópicas.

Em face da pequena quantidade de droga apreendida e à ausência de quaisquer indicativos de comercialização de drogas, o esperado seria o reconhecimento da condição de usuário e o relaxamento da prisão. Afinal, tem-se um réu primário, jovem e que nunca chegou a pôr os pés em uma Delegacia. No entanto, não foi isso que aconteceu.

Não obstante a confirmação da sua prisão preventiva na audiência de custódia, o fato de conviver maritalmente com a sua companheira foi valorado em seu desfavor, caracterizando a situação como corrupção de menor nos termos do art. 244-B do ECA[5]. Apesar de se tratar de uma adolescente com quase 18 anos e o casal possuir um relacionamento estável e consolidado, a anuência familiar não foi capaz de impedir a criminalização do relacionamento.Quando os juizes não querem fazer audiência de custódia?

Fundamentando-se em um entendimento que confunde a produção probatória no curso do processo com a análise das provas anexadas previamente ao Habeas Corpus e reafirma a discricionariedade do julgador na análise do remédio heroico, a argumentação defensiva sucumbiu diante do voto prolatado pelo relator no acórdão que optou por assistir razão aos termos do parecer lavrado pela 5º Procuradoria de Justiça do estado do Rio Grande do Norte que, de tão genérico, equivocou-se ao utilizar o modelo padrão confundindo até o nome do Paciente.

Felizmente, às vésperas de completar 8 meses da decretação da prisão preventiva do jovem, determinou-se o relaxamento da prisão preventiva no curso da audiência de instrução do processo nº 0113545-86.2018.8.20.0001 (esaj TJRN). Ao fundamentar a decisão, o juízo ressaltou o argumento de que a primariedade e os bons antecedentes advogam em favor do acusado e que a manutenção da cautelar seria bastante desproporcional diante de uma condenação vindoura que certamente se distancia da imposição de um regime fechado.

Ironicamente, os mesmos fundamentos alegados pelo juízo para resgatar a liberdade do paciente foram utilizados no habeas corpus. No entanto, não houve êxito evidenciando como a justiça criminal está fracassando em sua função de reconhecer direitos.

Depois de quase 8 meses e da possibilidade concreta de que as organizações criminosas já tenham cooptado mais um jovem, o sentimento que marca os estudantes é o mesmo fracasso relatado por Darcy Ribeiro[6] em suas lutas.

Diante de tudo, restou aos estudantes escrever esse texto e lançar um questionamento: a quem interessa mais um jovem preso?

Luiz Claudio da Silva Leite e Lucas Arieh Bezerra Medina são discentes em Direito pela UFRN e integrantes do Contraditório.

Notas:

[1] FARIAS, Hélio T. M. de. Grande Hotel de Natal: Registro histórico-memorial e restauração virtual. Monografia de Graduação. Natal, UFRN, 2005.

[2] O Anunciação representa uma das iniciativas do Projeto Capitólio e é protagonizado por estudantes de Direito da UFRN que, por meio do emprego de instrumentos processuais, buscam rever prisões preventivas ilegais.

[3] O “traficante”, a partir dos anos 80, passa a ser utilizado como termo estigmatizante capaz de reduzir a compreensão acerca de um indivíduo. Se nos anos 70 o “comunista” era responsável por “degustar criancinhas” em nosso país, hoje o “traficante” é responsável até por estimular o crescimento de favelas. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.p 58.

[4] O traficante estigmatizado, ou seja, aquele que apresenta uma relação entre o atributo presente na venda de substância entorpecente e o estereótipo do criminoso (preto, pobre, favelado) é um verdadeiro passe livre para as policias genocidas. idem.

[5] Art. 244-B.  Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

[6]  “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

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