Por Wilson Ferreira, publicado no Jornal GGN –
Nesses dias em que o Brasil transformou-se em uma verdadeira república distópica, um bom filme para assistir é “Brazil, O Filme” (1985) de Terry Gilliam, integrante da trupe de humor inglês Monty Python. Gilliam criou uma nova versão de “1984” de George Orwell: um sistema totalitário obcecado pela posse de informações numa sociedade onde pessoas e coisas estão totalmente interligadas por dutos, tubos e canos. O filme vislumbrou 31 anos atrás a vigilância e totalitarismo das redes de informação atuais e a dissidência de hackers – aqui representado por “encanadores” free-lancers, considerados dissidentes terroristas. Direitos individuais inexistem e qualquer um pode ser condenado e executado através de “provas” recolhidas pelo Ministério da Informação. Alguém pode ser morto por engano, mas tudo foi feito com “boa-fé”. Em tempos onde policiais federais aparecem na mídia como heróis hollywoodianos, “Brazil, O Filme” torna-se amargamente atual.
Lançado em 1985, o filme coincidiu com o fim da ditadura militar brasileira. Na época, muitos acharam que a versão em humor negro de 1984 de Orwell com o nome “Brazil”, e ainda com a trilha musical Aquarela do Brasil de Ary Barroso, era uma referência direta de Gilliam ao triste regime totalitário brasileiro que se encerrava naquele ano.
Gilliam tinha outras pretensões, mas certamente a coincidência entre os dois momentos em cada país (no Brasil o fim do regime totalitário e na Inglaterra a mão de ferro do Thatcherismo) foi uma autêntica sincronia – o filme parece capturar o espírito da sua época.
Mas ao mesmo tempo, oferece sombrias previsões para os dias atuais ao mostrar uma sociedade retro-futurista obcecada por informação, vigilância e… canos, ou melhor imensos e invasivos dutos que estão por todo lugar (residências, escritórios, restaurantes, não importando a classe social), no interior das paredes e por sobre os tetos como se oprimissem a todos.
Parece que em 1985 Terry Gilliam antecipava um sistema obcecado pela posse da informação sobre tudo e todos através de um “Ministério da Informação”, que emprega uma burocracia enorme e centralizada para gerir um tsunami interminável de papeladas que viajam através dos dutos. A rede de dutos da distopia de Brazil é a própria Internet atual, só que sem o marketing corporativo de gigantes como Google ou Microsoft que criam a aparência amigável da rede de computadores, escondendo os perigos da vigilância e controle de bancos de dados centralizados.
O Filme
O filme inicia com uma bizarra entrevista na TV com um alto funcionário do Ministério da Informação, Mr. Helpman (Peter Vaughan), que chama os terroristas (explosivos atentados são cometidos a todo instante) de “perdedores amargurados”, sem “espírito esportivo” e que “não conseguem ver o outro oponente ganhar”. A entrevista de Helpman é uma propaganda calculada para inspirar lealdade dos telespectadores ao regime totalitário.
O protagonista do filme é Sam Lowry (Jonathan Price), um homem introvertido e melancólico que trabalha em um terminal de computador o dia inteiro. Um mundo onde todos se vestem como se estivessem nos anos 1940, onde alta tecnologia combina-se com teclados de velhas máquinas de escrever, elevadores gaiolas e telefones em design retro.
Apesar de filho de uma família rica com alta influência no Ministério, Sam não tem ambições e sente-se feliz em um trabalho com pouca responsabilidade. Periodicamente, Sam escapa para um sonho recorrente no qual ele é um anjo que voa livre acima do caos do seu mundo, lutando contra demônios que tentam aprisionar a sua amada (uma linda mulher loira) em uma gaiola.
Em sua vida monótona, o máximo de transgressão que comete é alternar a tela do computador quando o chefe não está olhando, para assistir reprises de filmes antigos como Casablanca.
Tudo muda quando Sam envolve-se sem querer numa trama com terroristas e a mulher dos seus sonhos – Sam acaba descobrindo que ela existe, mas a mulher não é assim tão romântica e delicada como imaginava. Na verdade, há uma suspeita que ela atua junto com os terroristas.
Um dos onipresentes tubos em sua casa pifa, inutilizando o ar condicionado. Eis que surge um técnico free-lancer chamado Harry Tuttle (Robert De Niro). Tuttle é um dissidente por não querer trabalhar para a Central Service do Ministério. Ele desafia o Estado por trabalhar de forma autônoma, consertando os dutos sem preencher os protocolos burocráticos. Por isso, é considerado um terrorista.
Esse é o início das tribulações de Sam: além de conhecer a mulher de seus sonhos, Sam resolve ajudar o seu chefe para encobrir um erro do Ministério – ele decide entregar pessoalmente um “cheque de reembolso” para a esposa de Mr. Buttle, um homem que foi erroneamente preso (confundido com Harry Tuttle), torturado e morto pelo Ministério como resultado de um erro de digitação.
A convergência desses três eventos leva-o a aceitar a promoção que recusava pela insistência da sua mãe ambiciosa. Aceitando a promoção, Sam consegue privilégios nos bancos de dados do Ministério para conseguir localizar a mulher de seus sonhos e eventualmente ajudar os dissidentes do regime.
Por que “Brazil”?
Para o diretor Terry Gilliam a imagem do filme veio em Port Talbot, uma cidade industrial cinza e metálica no País de Gales onde até a praia é cheia de poeira e areia escura. O sol se punha e o contraste para Gilliam foi extraordinário: ele imaginou alguém com um rádio portátil naquela praia triste vendo o por do sol e ouvindo canções escapistas como Aquarela do Brasil. A música o transportava para um lugar menos cinza.
Gilliam vez um jogo de palavras ambíguo, não apenas com o Brasil, mas com uma ilha da mitologia irlandesa chamada “Brasil” (ou “Hy-Brasil” – significando “descendente do clã Breasal”) – segundo o mito, uma ilha a oeste da Irlanda que se torna visível em apenas um dia a cada sete anos.
A música “Aquarela do Brasil” tem a mesma função das Ilhas Fiji no filme Show de Truman – uma fantasia escapista de um mundo opressivo, cinza e totalitário.
Embora Brazil, o Filme parece de início mais uma versão do mundo de George Orwell, há uma primeira diferença: Gilliam parece fiel ao espírito psicodélico dos anos 1960 – a visão anárquica em que a melhor maneira de melhorar as coisas é explodindo-as.
Por isso, a narrativa do filme é confusa e ambígua com uma pesada atmosfera paranoica: repleto de efeitos especiais, cenas apocalípticas de destruição. É como se Gilliam tivesse sentado e colocado no papel em sketches todas as suas fantasias, sem se importar com as dificuldades de produção – para a época, o orçamento de 15 milhões de dólares era alto. O filme foi um fracasso de bilheteria, recuperando apenas metade do investimento. Mas com o passar do tempo tornou-se um clássico cult.
Por que Terry Gilliam estava obcecado por dutos e canos?
A bizarra rede de dutos, tubos e canos é outro simbolismo central no filme. São cinzas e maciços, pendurados tão baixo que quase toca na cabeça das pessoas. Claramente, é uma demonstração do papel opressivo que o Ministério da Informação desempenham todos os aspectos na vida das pessoas. Os dutos conectam todos os cantos da caótica cidade – ou seja, tudo e todos fazem parte da rede de informações do Estado.