Quando os filhos ditam as regras

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Por Jorge Trindade, psicológico, site Justificando – 

1. O presenteísmo para começo de conversa.

Uma das características mais marcantes da sociedade pós-moderna é o presenteísmo pela qual todo desejo pode ser instantaneamente satisfeito. Sem dar espaço para a frustração, a regra instalada se interpreta como: “faço o que eu quero, quando quero e como quero”. Dentre os diversos impactos que produz sobre as estruturas sociais, no âmbito das relações familiares o fato selecionado circunscreve-se ao enquadre de pais maltratados por seus filhos e o discurso subjacente pseudo-legitimizador pelo excesso de amor.

2. “Bebês gigantes e narcisismo hipertrofiado”

No tempo da velocidade tudo se tornou definitivamente midiático. A palavra de ordem é estar conectado. Os acontecimentos ficaram despossuídos de geografia. O lugar pode ser qualquer lugar, basta estar na rede. Entrar não requer rituais, só a senha, a memória de cena primitiva que confere pleno acesso ao “World.”




Nesse tempo a destempo e nesse lugar atópico, as estruturas e a dinâmica social se alteram paradoxalmente. Na família, por exemplo, os pais são concebidos como uma ausência. O grupo familiar que se formava pela união de laços afetivos se reclassifica pela disjunção. Nem o pai nem a mãe desfrutam de um lugar à mesa.

De um modo geral, qualquer tipo de reunião pode ser virtual e dispensar a presença física. Pode acontecer em nenhum lugar. Uma assembléia de ausências reais.

Longe de uma crítica retrógrada ao uso dos recursos da internet, salvo quando utilizada como nova modalidade de adição, importa assinalar a contradição entre a possibilidade de estar em contato simultaneamente “com todos” e ao mesmo tempo “com ninguém”.

As condições proporcionadas pelos novos métodos interativos de comunicação podem operar novas formas de exclusão, estabelecendo, por exemplo, uma clivagem entre infoinformados e infoanalfabetos, mas também entre pais e filhos ilhados entre si por uma oceânica rede de carência de afeto.

De fato, vive-se num mundo paradoxal. De um lado, as conquistas tecnocientíficas aprimoraram vertiginosamente as condições de vida, de outro, ficamos literalmente paralisados na impossibilidade de criar um mundo mais justo e fraterno (Boaventura Sousa Santos).

A nova “ortopedia” da família também dispensou os cuidados maternos, que deixaram de ser essenciais, e dessacralizou o lugar do pai, invertendo a seqüência do compromisso vital.

“Já não é a criança que deve a vida aos pais, é ela, pelo contrário, que dá sentido a dupla parental”

– Boris Cyrulnik, 2004

Ao pai cartorário ou mesmo simbólico descabe a metáfora paterna tornando casual a passagem do sujeito da natureza à cultura como designação proibitiva. A relação do ser com o dever-ser está descontinuada. A paixão pela “infantilização da infância” (idem, 2004) desautoriza que os pais produzam interdições. “São as crianças que ditam as leis aos pais (aos professores). São elas que possuem toda a autoridade” (ibidem, 2004).

A fase do “pequeno tirano” (Freud) e a etapa do egocentrismo (Piaget) como estágio do desenvolvimento infantil, após o prolongamento da “moratória psicossocial” (Erikson) da adolescência, ficaram congeladas na cena de uma personalidade estratificada e enrijecida de “bebês gigantes de narcisismo hipertrofiado” (ibidem, 2004).

3. Os pais maltratados: dados de uma pesquisa.

A sociedade que perdeu a noção do antes e do depois engendra suas aporias ao não permitir aos filhos qualquer tipo de denegação do desejo. O ideal permissivo de um crescimento desmarcado pelo NÃO produziu alguns desastres afetivos. Ao instaurar forças relacionais ao inverso, estabeleceu um ilógico trajeto: do amor aos filhos ao maltrato dos pais.

“Em uma geração, o fenômeno dos pais maltratados adquiriu dimensões mundiais. Nos Estados Unidos, 25% das chamadas telefônicas dirigidas a associações contra os maus tratos são realizadas por pais maltratados. Na França e em Quebec indica simultaneamente a realidade do fato e a dificuldade de falar dele, já que as vítimas sentem a necessidade de pedir socorro, mas com freqüência se negam a denunciar seus próprios filhos “.

– Boris Cyrulnik, 2004

Mesmo excluída a violência psicológica, a característica comum é que os filhos chegam à violência física contra seus pais e, caso eles “teimem” em querer impor limites, queixam-se de haver sido maltratados, declarando-os autoritários e impostores, antidemocráticos e inflexíveis, contra os quais têm o direito de se opor e de castigar, porque a lei a seguir não é a lei-do-pai (Lacan), mas o direito do filho desenvolver-se e “crescer” sem experimentar frustrações.

Por outro lado, quase todos os pais maltratados têm uma posição social elevada, com uma cifra surpreendente de juristas (30%), seguidos pelos médicos e psicólogos (20%). Praticamente a totalidade dos pais maltratados possuía uma sólida titulação e havia enunciado educar os filhos de forma democrática (idem, 2004).

Nesses indicadores não estão inseridos “os pais maltratados por filhos psicóticos, pois neles a imagem dos pais é confusa, nem os pais anciãos maltratados por filhos adultos, nem os patricidas nem os matricidas, cujo ato violento não têm a possibilidade de repetir” (ibidem, 2004).

Esses achados mostram como a incapacidade de suportar a frustração, dentre elas o fracasso das funções parentais, pode se expressar através do comportamento violento dirigido às representações simbólicas do afeto. O terror-sem-nome (Lacan) aplacado pela significação, atribuída na infância pelos pais, agora percebidos com desvalor, reedita-se na conduta agressiva que, ao invés de poder ser ressignificada, não encontra nomeações outras, senão pela via régia do gnohti seauton  ficando aprisionada no gesto concreto.

A impossibilidade da palavra e de sua organização pelo diálogo instaura maus tratos, fundando uma nova ordem na qual os filhos ditam as regras do funcionamento familiar e, mais tarde, do registro social.

O empobrecimento das funções parentais subverte o sentido originário dos afetos que passam a ser interpretados como sinais de fraqueza. Se só os pais necessitam dos filhos e não vice-versa, quem foi cuidado e amado não saberá nem cuidar nem amar.

Essa descontinuidade do afeto rompe a razão da cultura e põe em cena o anti-destino da comunidade familiar enquanto espaço e tempo privilegiados do amor.

A função paterna instauradora de tradição, da ordem da genealogia, “o caminho que vai dos vivos aos mortos, dos mortos ao que realmente vive” (Lacan), perde o rumo e toma a forma da submissão desesperada. Sem o tempo necessário para aumentar a herança do conhecimento, desaparece a sabedoria dos pais e a do pai dos pais, nada havendo a dizer às gerações futuras. Os canais estarão definitivamente fechados. Não haverá a possibilidade integradora do “entre” e do “ente” onde mora a palavra (Heiddeger), porquanto a gênese da comunicação está associada com a tolerância à frustração (Bion), com uma ausência outra e com a internalização do não familiar, que a sociedade midiática e presenteísta proíbe.

Nesse contexto, pais maltratados não são vítimas do amor que deram aos filhos. O amor não gera vítimas. Pais maltratados são pais desertores, que se omitiram do exercício da função parental e que fracassaram na sua missão de transmitir valores.

O maltrato aos pais não decorre do quantum de amor dado aos filhos, mesmo porque amor é uma noção prestigiosa (Perelman) que não pode ser conhecida pelo excesso, mas somente pela falta.

A condição de pais maltratados corresponde à criação de um contra-destino provocado pela revogação da lei fundamental (Lévi-Strauss) e pela edição, sem força de veto, da lei do cárcere, da amarga liberdade de um fim sem esperança. Sem dimensão de futuro, a tecnologia do presenteísmo idolatrou um tirano doméstico que a ciência não sabe controlar.

No seu reino, as palavras chaves são “sempre, aqui e agora, ausência de ritos, não ao simbólico e sim ao concreto, não à frustração e sim à realização imediata do desejo, não ao pensamento crítico e sim à escolaridade de baixa densidade”(Kessler).

4. No final das contas: a palavra, o amor e a cura.

Em um plano mais profundo, a realidade dos pais maltratados segue uma trama epistemicida que prenuncia o gesto violento, o qual in extremis pode também ser homicida. Ao assassinar o conhecimento (nosce te ipsum) mata também o universo simbólico em que ele acontece, exterminando qualquer possibilidade de diálogo.

Como toda a ação violenta, em especial aquela de conotação intra-familiar, pelos conteúdos implícitos que transporta, o gesto maltratante exclui a intermediação da palavra, através da qual, quando o homem sofre, o amor redime e cura.

Jorge Trindade é Pós-doutorado em Psicologia Forense. Livre docente em Psicologia Jurídica. Doutor em Psicologia Clínica. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Lisboa. Mestre em Psicologia. Especialista em Psicologia Clínica e Jurídica. Professor Titular na Universidade Luterana do Brasil. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Vice-Presidente da Asociación Latinoamericana de Magistrados, Funcionarios, Profesionales, Operadores e Niñez, Adolescencia y Familia.  Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família/RS.

[1] Texto escrito a partir das idéias de Boris Cyrulnik em El amor que nos cura, 2004.

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