Quanto custa proibir as drogas?

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Por Maria Teresa Cruz, compartilhado de Projeto Colabora – 

Guerra às drogas consome anualmente mais de R$ 5 bilhões do orçamento de Rio e São Paulo, fracassa no combate ao crime e é ineficaz na redução de consumo e venda

Relatório mostra custo do combate a drogas que tira recursos da saúde e da educação (Arte: Laerte – Reprodução/CeSec)

Com os R$ 5,2 bilhões gastos nos estados de SP e RJ em um ano para aplicar a Lei de Drogas, seria possível manter mais de um 1 milhão de alunos no ensino médio da rede pública pelo mesmo período. Ou, ainda, garantir o auxílio emergencial de R$ 600, em razão da pandemia, para 728 mil famílias. Também seria possível comprar 108 milhões de doses das vacinas Coronavac e Aztrazeneca, que poderiam imunizar 54 milhões de brasileiros.




Esses são alguns dos indicadores revelados pelo relatório “Tiro no Pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro e São Paulo”, feito pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), lançado nesta segunda-feira (29).

O estudo analisou dados do orçamentos para os integrantes do sistema de Justiça (Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça) no ano de 2017 e constatou que a lógica punitivista imposta pela Lei de Drogas custa caro ao Estado porque é ineficiente, não quebra as cadeias de comando do tráfico, como os grupos criminosos organizados, reforça o racismo, é responsável pelo encarceramento em massa e alimenta a violência policial.

Infografia: Fernando Alvarus

A decisão de analisar os dados de 2017 se deu pela necessidade de padronização dos estados e, considerando que o Rio de Janeiro viveu uma intervenção de caráter militar na segurança pública em 2018, isso poderia impactar na elaboração dos indicadores.

“A guerra às drogas é uma política de Estado e isso tem um custo aos cofres públicos. Isso não tinha sido abordado no Brasil. E discutir orçamento não é menos importante, porque ele reflete as prioridades políticas dos governos. O Estado tem investido há mais de 20 anos nessa lógica proibicionista, que não reduz a violência, não atende ao propósito de diminuir o consumo e venda, e ainda gera violência, muita dor e sofrimento”, analisa Renata Neder, uma das coordenadoras do projeto, em entrevista ao #Colabora.

Eles querem exterminar os indesejáveis. Não se pega os megatraficantes, se pega o varejista. É o que tem nas favelas. Na favela, não ficam os megatraficantes

Débora Silva
Fundadora do Mães de Maio

Para Débora Silva, fundadora das Mães de Maio, grupo que reúne famílias de vítimas de violência de Estado criado após os crimes de maio de 2006, quando mais de 600 pessoas foram assassinadas em investida das forças de segurança contra o PCC, esse é o retrato da necropolítica. “Não se fala em combater drogas verdadeiramente. Eles combatem pessoas. E essa guerra tem cor, classe social e sexo: são jovens, homens, negros, favelados”, pontua.

“As autoridades pautam o debate do orçamento apenas na necessidade de cortar gastos, mas não se faz uma discussão séria sobre a receita, ou seja, a arrecadação e a decisão, que é política, de onde aplicar esses recursos. Essa lacuna foi o que motivou o estudo”, continua.

Operação da PM nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho no Rio: gastos com repressão são muito maiores do que com investigação (Fernando Frazão/Agência Brasil 10/10/2016)
Operação da PM nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho no Rio: gastos com repressão são muito maiores do que com investigação (Fernando Frazão/Agência Brasil 10/10/2016)

Os números mostram a relação entre a guerra às drogas e o encarceramento em massa. Em 2006, a Lei 11.346 foi aprovada e estabeleceu novos parâmetros para a criminalização do porte de drogas. A justificativa era despenalizar o usuário, mas o efeito foi devastador.

“A lei permitiu que se consolidasse a presunção de identidade entre tráfico e crime organizado: MP e Judiciário passaram a associar automaticamente todo vendedor de drogas morador de favela à facção atuante na localidade, aumentando com isso a pena cabível, em vez de diminuí-la”, aponta o relatório.

Em dez anos, a população prisional dobrou, segundo o último relatório do Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Em 2006, pouco mais de 400 mil pessoas estavam presas; em 2017, já eram mais de 726 mil, sendo 32% presos provisórios, ou seja, sem condenação. O relatório ainda aponta que o tráfico de drogas é responsável por mais de 60% das prisões de mulheres. Entre os homens, o crime se divide com roubos nas estatísticas, cada um deles representando cerca de 26% dos encarceramentos.

Mas se a população prisional vem crescendo com a aplicação da Lei de Drogas, o investimento nas prisões diminuiu, segundo o estudo do CESeC: no RJ, houve redução de 13,8% no orçamento do sistema penitenciário entre 2015 e 2019; em SP, a redução foi de 10%.

“As prisões já são precárias no sentido de garantia de direitos. O sistema já é superlotado, não garante acesso à educação e saúde de quem está encarcerado, é alvo constante de denúncia de tortura e maus tratos. Esse dado, portanto, que mostra redução de despesa ao mesmo tempo que aumenta a população, pode sinalizar que há uma maior precarização na condição de vida das pessoas presas”, avalia Renata Neder.

O Estado tem investido há mais de 20 anos nessa lógica proibicionista, que não reduz a violência, não atende ao propósito de diminuir o consumo e venda, e ainda gera violência, muita dor e sofrimento

Renata Neder
Pesquisadora do CeSec

O mesmo gráfico também mostra a redução de despesas com a Polícia Civil de SP, responsável por investigar crimes, na ordem de 13,8%, e de 6,4% com a Defensoria Pública paulista, que garante o direito de defesa a todo cidadão. Para Renata, isso reflete a baixa elucidação de crimes como homicídio e estupros, e também a operacionalização do racismo. “Quando você conversa, por exemplo, com policiais civis você ouve que não há investimento, que está precarizado . O trabalho das perícias é precarizado também. No Rio de Janeiro, o Instituto Médico Legal, volta e meia, está com o raio-x quebrado e não faz exame nos corpos. Isso, inclusive, aconteceu com a Marielle Franco e o Anderson Gomes ”, pondera.

“Assim como é dramático ver o menor investimento na Defensoria e o quanto isso não significaria a precarização do direito de defesa das pessoas. Até porque a gente já sabe que o sistema de justiça criminal tem um alvo prioritário que são os jovens, negros, moradores de favelas e periferias que é justamente quem mais precisa da defensoria para ter acesso à justiça”, explica.

Débora Silva destaca que a caneta do Judiciário pode ser bastante violenta ao arquivar investigações de crimes contra a vida, ao manter pessoas presas sem necessidade.

“Não é possível não existir uma perícia independente. A perícia não pode ser atrelada a segurança pública que acaba desaguando na impunidade. Essas situações que a gente vê no Judiciário mostram como o racismo está estruturado dentro das instituições no geral”, afirma. “Não adianta não ser racista, é preciso ser antirracista para poder esmagar o fascismo”.

Um estudo realizado pelo Núcleo de Estudos de Violência da USP, citado no relatório, mostra que 88% das pessoas acusadas por tráfico de drogas respondem ao processo presas. Quando condenados em primeira instância, apenas 7% têm o direito de recorrer em liberdade. Em 62,13% das ocorrências de prisão em flagrante, o suspeito tem até 100 gramas de drogas. Os dados se referem a casos da cidade de São Paulo.

Reprimir é a política de segurança

As polícias militares do Rio de Janeiro e São Paulo abocanharam, respectivamente, 32,3% e 36,3% do orçamento do ano de 2017 do sistema de justiça criminal em cada um dos estados.

Para Débora Silva, o investimento em repressão mostra que o Estado prefere criminalizar em vez de combater. “Eles querem exterminar os indesejáveis. Não se pega os megatraficantes, se pega o varejista. É o que tem nas favelas. Na favela não ficam os megatraficantes. São soldados do tráfico. Mas quem são os donos? Esses nem colocam as mãos nas drogas. Combater a droga é mexer no bolso. Um país racista, que tem uma polícia violenta, militarizada. A guerra às drogas também atinge as mães. Aconteceu conosco. Tentam rotular a gente como mãe de traficante, como herdeira de biqueira”, desabafa a militante e pesquisadora.

Outro elemento aferido pelo relatório “Um tiro no pé” é a falta de transparência de órgãos do sistema de justiça criminal, em grande parte das vezes, pela ausência de dados sistematizados. Renata Neder conta que a maioria dos dados só foi obtida pela LAI (Lei de Acesso à Informação) e afirma que é possível considerar que os dados coletados são subestimados. Por essa razão, a equipe do CESeC ouviu 130 e 21 policiais militares de SP e RJ, respectivamente, que trouxeram outros elementos.

“No Rio de Janeiro, a PM não digitaliza os boletins de ocorrência. Apenas parcialmente, mas eles não têm o número total de ocorrências em um ano. Ou seja, isso seria um indicador para medir o trabalho da polícia e não está sistematizado, estão em papel e isso impede também a criação de estratégia de ação da polícia. As ações são feitas no escuro, E aí a gente percebeu também que mesmo esses registros são insuficientes para entender a dinâmica do trabalho, porque esses registros não mostram no dia a dia, como os policiais são orientados, qual o foco das ações”, explica.

O relatório conclui que, na estimativa dos agentes ouvidos, a PM do RJ teria gasto R$ 2,9 bilhões e a de SP, R$ 4,5 bilhões em 2017.

Governo do Rio aponta redução nos crimes contra a vida em 2021

O governo do Rio, após o lançamento do estudo, divulgou nota. “A política de segurança do Governo do Estado do Rio de Janeiro tem como objetivo preservar vidas e é baseada em prevenção, inteligência, investigação e tecnologia. Em fevereiro deste ano, como mostra o Instituto de Segurança Pública, o estado do Rio de Janeiro  registrou os menores números de crimes contra a vida em 30 anos, os homicídios dolosos caíram 25% quando comparado com o mesmo mês de 2020. Foram 246 vítimas em fevereiro deste ano contra 326 em fevereiro de 2020 –  o menor valor para o período desde 1991, quando foi iniciada a série histórica do ISP”, afirma.

A nota acrescenta ainda que “também houve queda no indicador letalidade violenta – soma de homicídio doloso, roubo seguido de morte, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agente do Estado”. De acordo com o governo, em fevereiro, o indicador registrou o menor valor para o mês desde 1991: 409 em 2021 e 502 em 2020. As mortes por intervenção de agente do Estado diminuíram 10% em fevereiro.

O governo do Rio acrescenta ainda que, nos dois primeiros meses de 2021, as polícias Civil e Militar retiraram de circulação 1.272 armas de foto (93 fuzis) e que os roubos de rua (roubo a transeunte, roubo em coletivo e roubo de aparelho celular), de carga e de veículo tiveram redução, respectivamente, de 32%, 27%  e 28% em 2021. “O Instituto de Segurança Pública é reconhecido pelo  conhecimento acumulado no desenvolvimento de metodologias de análise de dados relativos à segurança pública. Sempre prezou pela transparência dos métodos utilizados para levantamento dos números e divulgação para a sociedade”, conclui a nota.

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