“Quantos Dias. Quantas Noites”, um filme da vida

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva, novamente, ao cinema. Desta vez, o cronista fala sobre um filme que nos mostra como levar a vida antes que sejamos levados dela.

Ao ler o texto, generosamente dedicado a mim e à maravilhosa companheira Carmola, lembrei-me do ator e cineasta Clint Eastwood, que, quando completou 84 anos em 2014, afirmou que o seu segredo para a longevidade sadia e ativa é:  “Nunca deixo o velho entrar em casa”. Eastwood completou 93 anos em 31 de maio deste ano e está realizando um novo filme. Decididamente, o velho não entrou na vida do artista. Ah, César também aborda no seu texto, a nossa querida, longeva e jovem Ilha de Paquetá. (Washington Araújo).




Vamos, então, ao texto, sempre coisa de cinema, do cronista Cícero César:

“(Para Washington e Carmola, que sabem das coisas)

O documentário brasileiro “Quantos Dias. Quantas Noites” (Cacau Rhodem, 2023) parte de uma premissa óbvia ululante: iremos morrer, mais cedo ou mais tarde, tendo vivido ou não. Ou de modo menos óbvio , pode-se questionar: “Existimos, ao que será que se destina?”, como na belíssima frase filosófico-poética indagação de Caetano Veloso.


Perguntemo-nos, pois.
O que significa envelhecer em um país como o Brasil, em um tempo como o de hoje? O que significa ser um paciente em tratamento paliativo, isto é, um paciente que sabe que tem seus dias contados?

Para ambos os casos, como o filme aponta, a solução passa pelo procurar viver bem, pelo aprender a gozar a vida hoje, antes da eternidade. Para tanto, além dos check-ups, é importante manter um círculo ativo de amizades, fazer coisas novas etc. etc. Viver, em suma, é se deixar viver.


O filme é massa e tem um plus: muita coisa do documentário foi rodada no Rio de Janeiro, havendo inclusive cenas em Paquetá, esta (f)ilhinha que tanto nos sensibiliza.

Aliás, Paquetá é justamente um exemplo de lugar onde os velhos vivem e se divertem, tanto é assim que existe uma piada interna na qual o moradores da ilha são comparados aos velhinhos do filme “Cocoon” – quem deles se lembra?


Enfim, o que significa se divertir? Em Paquetá é mais ou menos assim: tira-se uma foto, que funciona como uma suave convocação. O pessoal chega e opa! Encara-se um bom prato de rabada com os amigos, mais a cerveja gelada, mais a boa música, mais o papo cheio de animação, de humor. Santo remédio para quem quer viver, só não causa benefício a quem por acaso for intolerante à alegria.


Se isso tudo tem a ver com dinheiro? Claro, mas não é caso de dinheiro apenas, tendo mais a ver em saber cantar ou saber apreciar as boas coisas da vida, a saber ouvir. Para todas as demais coisas, há os mosquitos e a falta d´água, entre outras mumunhas contemplativas para nos certificarmos que existimos.


O que se deve esperar a respeito do envelhecimento da população brasileira? Pergunta em aberto, difícil de responder. Quem viver, verá. Será? Será que será possível viver? Dúvidas e dúvidas. Dúvidas e dúvidas suscitadas pela enorme desigualdade social do país. O assunto é uma questão de saúde pública, de política pública, a gente quer saber o que o pessoal tem a dizer.


É por essas e por outras que não podemos nos esquecer o quanto de nós se foi com a pandemia. Seguir a vida, sim, mas respeitar os mortos, que exigem justiça. De todo o filme o que mais me doeu foi justamente a cena das covas abertas que receberiam as inúmeras vítimas.

Antigamente se esperava um comportamento exemplar dos velhinhos – o que em geral beirava a assepsia: em dias de festa, eles tinham que ter cheiro de talco, dentadura no lugar e saber cochilar no sofá diante da tevê sempre que possível. Assim eles eram um tanto inofensivos e previsíveis. A família estava segura, podendo se orgulhar de seu senior citizen.


Isto mudou um pouco e assustou muito. Quando deixará de assustar ainda não se sabe. O que se sabe é que a população brasileira está envelhecendo. Há pessoas que se impressionam quando se dão conta de que há gente que só envelhece por fora. Por dentro, desejos e mais desejos suscitam a hipótese segundo a qual ainda há muita lenha para queimar mesmo se estando longe da adolescência.

E queimará, a depender de certas condições. A sexualidade na velhice é algo que este filme não aborda, mas que também deveria entrar nesta conta do que significa viver bem.


Sem samba não dá. Sem desejo, também não. O documentário termina com “Ouço”, de Gilberto Gil. É impressionante como a canção dialoga bem com o espírito do filme, parecendo soar um tanto inédita aos ouvidos. É preciso ouvir o bater dos corações. Que coisa linda, que coisa louca.


Enfim, trata-se de um filme indispensável. Mais um feito de um diretor que já abordou a importância de brincar (“Tarja Branca”, 2014), que já escutou os desejos dos jovens educandos (“Nunca me sonharam”, 2017), e que agora nos avisa que é preciso enfrentar as dores e as delícias do viver.

Em tempo: Tarja Branca está disponível na Amazon Prime; “Nunca me sonharam” e “Quantos dias quantas noites”, no Itaú Cultural Play.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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